segunda-feira, 9 de abril de 2012

Dos conselhos de Dom Quixote a Sancho acerca do governo da Ilha

Primeiramente, filho, hás-de temer a Deus, porque no temor de Deus está a sabedoria, e, sendo sábio, em nada poderás errar. Em segundo lugar, põe os olhos em quem és, procurando conhecer-te a ti mesmo, que é o conhecimento mais difícil que se pode imaginar. De conhecer-te resultará o não inchares como a rã, que se quis igualar ao boi: que, se isto fizeres, virá a ser feia base da roda da tua loucura a consideração de teres guardado porcos na tua terra.
 
 — Isso é verdade — respondeu Sancho — mas foi quando era pequeno; depois de homenzito, o que eu guardei foram gansos; mas isto parece-me que não faz nada ao caso, que nem todos os que governam vêm de famílias reais.

— É verdade — replicou D. Quixote — e por isso, os que não são de origem nobre devem acompanhar a gravidade do cargo que exercitam com uma branda suavidade, que, ligada com a prudência, os livre da murmuração maliciosa, a que nenhum estado escapa. Faze gala da humildade da tua linhagem, Sancho, e não tenhas desprezo em dizer que és filho de lavradores, porque, vendo que te não corres por isso, ninguém to poderá lançar em rosto; ufana-te mais em seres humilde virtuoso, que pecador soberbo. Inumeráveis são os que, nascidos de baixa estirpe, subiram à suma dignidade pontifícia e imperatória, e podia dar-te tantos exemplos que te fatigaria. Repara, Sancho, que, se te ufanares de praticar atos virtuosos, não há motivo para ter inveja aos príncipes e senhores, porque o sangue se herda e a virtude adquire-se, e a virtude por si só vale o que não vale o sangue. Sendo isto assim, se acaso te for ver, quando estiveres na tua ilha, algum dos teus parentes, não o afrontes nem o desdenhes, mas, pelo contrário, acolhe-o e agasalha-o, e festeja-o, que satisfarás com isso o céu, que gosta que ninguém se despreze pelo que ele fez, e corresponderás ao que deves à bem concertada natureza. Se levares tua mulher contigo (porque não é bem que os que governam por muito tempo estejam sem as suas mulheres), ensina-a, doutrina-a e desbasta-lhe a natural rudeza, porque tudo o que ganha um governador discreto, perde-o muitas vezes uma mulher rústica e tola. Se, por acaso, enviuvares, e com o cargo melhorares de consorte, não a tomes tal que te sirva de anzol e de isca, porque em verdade te digo que, de tudo o que a mulher do juiz receber há-de dar conta o marido na residência universal, com que pagará pelo quádruplo na morte o que ilegitimamente recebeu em vida. Nunca interpretes arbitrariamente a lei, como costumam fazer os ignorantes que têm presunção de agudos. Achem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, mas não mais justiça do que as queixas dos ricos. Quando se puder atender à eqüidade, não carregues com todo o rigor da lei no delinqüente, que não é melhor a fama do juiz rigoroso que do compassivo. Se dobrares a vara da justiça, que não seja ao menos com o peso das dádivas, mas sim com o da misericórdia. Quando te suceder julgar algum pleito de inimigo teu, esquece-te da injúria e lembra-te da verdade do caso. Não te cegue paixão própria em causa alheia, que os erros que cometeres, a maior parte das vezes serão sem remédio, e, se o tiverem, será à custa do teu crédito e até da tua fazenda. Se alguma mulher formosa te vier pedir justiça, desvia os olhos das suas lágrimas e os ouvidos dos seus soluços, e considera com pausa a substância do que pede, se não queres que se afogue a tua razão no seu pranto e a tua bondade nos seus suspiros. A quem hás-de castigar com obras, não trates mal com palavras, pois bem basta ao desditoso a pena do suplício, sem o acrescentamento das injúrias. Ao culpado que cair debaixo da tua jurisdição, considera-o como um mísero, sujeito às condições da nossa depravada natureza, e em tudo quanto estiver da tua parte, sem agravar a justiça, mostra-te piedoso e clemente, porque ainda que são iguais todos os atributos de Deus, mais resplandece e triunfa aos nossos olhos o da misericórdia que o da justiça. Se estes preceitos e estas regras seguires, Sancho, serão longos os teus dias, eterna a tua fama, grandes os teus prêmios, indizível a tua felicidade; casarás teus filhos como quiseres, terão títulos eles e os teus netos, viverás em paz e no beneplácito das gentes, e aos últimos passos da vida te alcançará a morte em velhice madura e suave, e fechar-te-ão os olhos as meigas e delicadas mãos de teus trinetos. O que até aqui te disse são documentos que devem adornar tua alma: escuta agora os que hão-de servir para adorno do corpo. 
 
CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XLII.

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