sexta-feira, 22 de julho de 2011

Harry Brown (2009)






Harry Brown é um filme de ação eivado de uma carga dramática sofisticada o suficiente para fazer agradar mesmo os que não apreciam tal gênero. O personagem principal que dá nome ao filme, é um fuzileiro naval aposentado, que serviu em Ulster(Irlanda do Norte), mas agora leva uma vida pacata num conjunto habitacional onde a violência das gangues se faz presente no dia à dia, Brown tenta tolerar e viver obliquo a isso como qualquer cidadão comum, porém as coisas mudam de sentido quando seu amigo, também aposentado, e que vinha sendo atormentado por vândalos, é brutalmente assassinado, e confrontado com a expectativa de impunidade por parte da justiça aos assassinos de seu companheiro, Brown lança-se a uma sortida de violência e vigilantismo contra as gangues de seu bairro, e em sua busca por vingança ele toma contato com o submundo das drogas, sexo, e crime... há uma interessante parte no filme que nos dá uma visão clara dos motivos que dão origem as revoltas e protestos violentos de "jovens" que pode ser adequadamente relacionada, por exemplo, aos protestos na França em 2005. Desnecessário dizer a majéstica atuação de Michael Caine, que em minha opinião é dos maiores atores que em Inglaterra se produziram, sua elegância natural e porte aristocrático britânico, adiciona ao filme uma química singular, e sua atuação impecável demonstra o quão excelente ele é em sua nobre arte, a música abaixo faz parte da trilha sonora do filme.




When the blood dries in my veins
Quando o sangue secar em minhas veias
And my, heart feels no more pain
E meu coração não mais sentir dor,
I know, I'll be on my way
Eu saberei então, que estou no caminho
To heaven's door
Para os portões celestiais.

I know when I'm not
Sei que quando eu não mais existir
I'll be hoping I don't drop
Ansiarei por não cair
To a place where I will rise,
No lugar onde ascenderei,
like before (2x)
Como outrora

I can feel, something happening
Eu posso sentir algo acontecendo
That I've never felt before
Que eu jamais sentira antes,
Hopeless dreaming will start
O sonhar desesperado,
Dragging me away from heavens door (2x)
Arrastar-me-á para longe das portas do céu.

When my mind stops thinking
Quando minha mente parar de pensar,
And my eyes stop blinking I hope...
E meus olhos se fecharem
Somebody's there
Eu espero que haja alguém lá.

When my heart stops beating
Quando meu coração parar de bater,
And my lungs stop breathing In air...
E meus pulmões pararem de inspirar,
I hope somebody cares
Eu espero que alguém se importe.

When the blood dries in my veins
Quando o sangue secar em minhas veias
And my, heart feels no more pain
E meu coração não mais sentir dor,
I know, I'll be on my way
Eu saberei então, que estou no caminho
To heaven's door
Para os portões celestiais.

I know when I'm not
Sei que quando eu não mais existir
I'll be hoping I don't drop
Ansiarei por não cair,
To a place where I will rise,
No lugar onde ascenderei,
like before (2x)
Como outrora

I can feel, something happening
Eu posso sentir algo acontecendo
That I've never felt before
Que eu jamais sentira antes,
Hopeless dreaming will start
O sonhar desesperado,
Dragging me away from heavens door (2x)
Arrastar-me-á para longe das portas do céu.

When my mind stops thinking
Quando minha mente parar de pensar,
And my eyes stop blinking
E meus olhos se fecharem,
I hope... Somebody's there
Eu espero... que haja alguém lá.

When my heart stops beating
Quando meu coração parar de bater,
And my lungs stop breathing In air...
E meus pulmões pararem de inspirar,
I hope somebody cares
Eu espero que alguém se importe.

When my mind stops thinking
Quando minha mente parar de pensar,
And my eyes stop blinking
E meus olhos se fecharem,
I know... At the end

Eu sei... no final.

Chamado dos Deuses

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Tu, suave e pura como uma flama...



Du schlank und rein wie eine flamme
Tu, suave e pura como uma flama,
Du wie der morgen zart und licht
Tu, como a delicadeza da manhã luzidia,
Du blühend reis vom edlen stamme
Tu, inflorescência vicejante de escol,
Du wie ein quell geheim und schlicht
Tu, como nascente recôndita e impoluta.

Begleitest mich auf sonnigen matten
Acompanhas-me pela relva ensolarada,
Umschauerst mich im abendhauch
Velas por mim às virações do arrebol,
Erleuchtest meinen weg im schatten
Iluminas meu caminho nas trevas,
Du kühler wind du heisser hauch
Tu, vento fagueiro, deliciosa aragem.

Du bist mein wunsch und mein gedanke
Tu és meu desejo e intelecto,
Ich atme dich mit jeder luft
Hauro-te a cada respiração,
Ich schlürfe dich mit jedem tranke
Sorvo-te a cada gole,
ich küsse dich mit jedem duft
Beijo-te em cada perfume.

Du blühend reis vom edlen stamme
Tu, inflorescência vicejante de escol,
Du wie ein quell geheim und schlicht
Tu, como nascente recôndita e impoluta.
Du schlank und rein wie eine flamme
Tu, suave e pura como uma flama,
Du wie der morgen zart und licht.

Tu, como a delicadeza da manhã luzidia.

Stefan George




Atriz romena Manuela Hărăbor, no filme Pădureanca(A mulher da floresta) de 1987.

domingo, 10 de julho de 2011

Tempestade Sacra



Sturmes Boten fern am Himmel
As tempestades levantam-se no horizonte longínquo,
Mit einer dunklen Flut aus Regen
Prenunciando em negras lufadas torrenciais,
Naht ein tobendes Gewitter
A violenta borrasca,
Bringt uns unheilvollen Segen
Que derrama sobre nós, bençãos desditosas.

Wir, die immer vorwärts blicken
Nós que sempre buscamos,
Keiner Seele etwas schulden
Almas impolutas,
Müssen jetzt durch Groll und Sühne
Devemos nós agora, entre o rancor e a contrição,
Eines Gottes Zorn erdulden
A fúria de um Deus padecer.

Eines Gottes, der da waltet
Um Deus que aqui impera,
Und uns richtet nur zugrunde
Conduz-nos a ruína,
Uns nur straft mit seinem Spotte
E castiga-nos com sua verdasca do escárnio,
Unaufhörlich schmerzt die Wunde
Fustigando nossas feridas pela eternidade.

Mag es stürmen, mag es hageln
Possam essas tempestades, possam essas ventanias,
Donner, Blitz und Ungeheuer
Trovões, raios e potestades,
Aus dem Himmel auf uns stürzen
Dos céus descender sobre nós,
Soll es brennen, dieses Feuer!
Ainda assim, essas flamas crepitarão!

Soll es brennen und uns schüren
Crepitarão ainda e animarão nosso espírito,
Für den nächsten Opfergang
Para o próximo sacrifício,
Kein Gott trübt des Menschen
würde
Nenhum Deus obscurecerá a humanidade,
Wir sind frei ein Leben lang
Tornaremo-nos livres por toda a nossa vida.

Ein Leben lang – sind wir frei
Por toda a vida, seremos livres,
Wir sind frei ein Leben lang
Nós somos livres por toda nossa vida...
Ein Leben lang – sind wir frei
Wir sind frei ein Leben lang

Devoção

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Napoleão



Sobre uma ilha isolada,
Por negros mares banhada,
Vive uma sombra exilada,
De prantos lavando o chão;
E esta sombra dolorida,
No frio manto envolvida,
Repete com voz sumida:
- Eu inda sou Napoleão.

Tremem convulsas as plagas
Bravias lutam as vagas,
Solta o vento horríveis pragas
Nos cendais da escuridão;
Mas nas torvas penedias
Entre fundas agonias,
Ela diz às ventanias:
- Eu inda sou Napoleão.

- E serei! do céu da glória,
Nem dos bronzes da memória,
Nem das páginas da história
Meus feitos se apagarão;
Passe a noite e as tempestades,
Venham remotas idades,
Caiam povos e cidades,
- Sempre serei Napoleão.

Da coluna de Vendôme,
O bronze, o tempo consome,
Porém não apaga o nome
Que tem por bronze a amplidão.
Apesar de infausto dia,
Da infâmia que tripudia,
Dos bretões a cobardia,
- Sempre serei Napoleão.

Nos vastos plainos do Egito,
Sobre Titães de granito,
Eu tenho um poema escrito
Que deslumbra a solidão.
Das Ísis rasguei os véus,
Entre os altares fui deus,
Fiz povos escravos meus,
- Ah! inda sou Napoleão.

Desde onde o crescente brilha
Até onde o Sena trilha,
Tive o mundo por partilha
Tive imensa adoração;
E de um trono de fulgores
Fiz dos grandes - servidores,
Fiz dos pequenos - senhores,
- E sempre fui Napoleão.

Quando eu cortava os desertos,
Vinham-me os ventos incertos
De incenso e mirra cobertos
Lamber-me as plantas no chão;
As caravanas paravam,
E os romeiros que passavam
Às solidões perguntavam:
- É este o deus Napoleão?

E lá nas plagas fagueiras,
Onde as brisas forasteiras,
Entre selvas de palmeiras
Corre o sagrado Jordão,
O lago dizia ao prado,
O prado ao monte elevado,
O monte ao céu estrelado:
- Vistes passar Napoleão!

Dizei, auras do Ocidente,
Dizei, tufão inda quente
Do bafejo incandescente
Do não vencido esquadrão,
Como é ele? é belo, ousado?
Tem o rosto iluminado?
Tem o braço denodado?
- Sempre é grande Napoleão?

E as águias no céu corriam,
E os areais se volviam,
E horrendas feras bramiam
No imenso da solidão;
Mas as vozes do deserto
Se erguiam como um concerto
E vinham saudar-me perto:
- Tu és, senhor, Napoleão!

- Se sou! que Marengo o conte,
De Austerlitz o horizonte,
E aquela soberba ponte
Que transpus como o tufão!
E a minha vida de Ajácio,
E o meu sublime palácio,
E os pescadores do Lácio
Que só dizem - Napoleão!

Se o sou! que digam as plagas,
Onde do sangue nas vagas,
Coberta de enormes chagas
Dorme vil população;
Digam da Ásia as bandeiras,
Digam longas cordilheiras,
Que se abatiam, rasteiras,
Ao corcel de Napoleão!

Se o sou! diga Santa Helena
Onde a mais sublime cena
Fechou tranqüila e serena
Minha história de Titão,
Digam as ondas bravias,
Digam torvas penedias,
Onde as rijas ventanias
Vêm murmurar: - Napoleão.

E serei! do céu, da glória,
Nem dos bronzes da memória
Nem das páginas da história
Meus feitos se apagarão!
Assim na rocha isolada
Pelas espumas banhada,
Disse a sombra desterrada,
De prantos lavando o chão.

As névoas rolam nos céus,
Da noite escura nos véus
Soltam negros escarcéus
Rugidos de imprecação;
Mas das sombras a espessura
A face da onda escura,
O salgueiro que murmura
Tudo fala - Napoleão!


VARELLA, Fagundes, Vozes da América, 1864.


Da jurisdição dos pais sobre as filhas.

— Se casassem todos os que se querem — acudiu D. Quixote — tirava-se aos pais a escolha e a jurisdição de casarem os seus filhos com quem devem e quando querem, e se ficasse à vontade das filhas escolher os maridos, haveria tal que escolheria o criado do pai, e outra o que viu passar na rua, no seu entender bizarro e jeitoso mancebo, ainda que fosse um espadachim valdevinos: que o amor e a afeição facilmente cegam os olhos do entendimento, tão necessários para escolher estado; e no do matrimônio é muito perigoso o erro, e é mister grande tento e particular favor do céu para acertar. Quer uma pessoa empreender uma larga viagem e, se é prudente, antes de se pôr a caminho busca alguma companhia segura e aprazível. Pois por que não fará o mesmo o que há-de caminhar toda a vida até ao paradeiro da morte, quando de mais a mais a pessoa escolhida tem de ser sua companheira de cama e mesa, como acontece à mulher com seu marido? Uma esposa não é mercadoria que, depois de comprada, ainda se pode trocar ou rejeitar; é um acidente inseparável, que dura a vida toda; é um laço que, uma vez atado ao pescoço, se transforma em nó górdio, que, se não for cortado pela garra da morte, não há meio de desatar. Muitas mais coisas poderia dizer neste assunto, se o não estorvara o desejo que tenho de saber se o senhor licenciado tem mais alguma coisa que narrar da história de Basílio.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XVIII.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Se o meu “foi” tornasse a ser...



Se o meu “foi” tornasse a ser,
sem eu ter que esp’rar “será”,
ou viesse o tempo já
do que está p’ra acontecer...

GLOSA

Alfim, como tudo passa,
passou o bem que me deu
a fortuna nada escassa,
mas que nunca me volveu,
por mais que eu peça, ou que faça.
Fortuna, bem podes ver
que já é longo o meu sofrer;
faze-me outra vez ditoso,
que eu seria venturoso
se o meu “foi” tornasse a ser
.

Só quero um gosto, uma glória,
uma palma, um vencimento,
um triunfo, uma vitória,
tornar ao contentamento
que me é pesar na memória.
Fortuna, leva-me lá,
e temperado estará
todo o rigor do teu fogo,
sobretudo sendo logo,
sem eu ter que esp’rar “será”
.

Sei que sou indeferido,
pois tornar o tempo a ser,
depois de uma vez ter sido,
não há na terra poder
que a tanto se haja estendido.
Corre o tempo; leve dá
seu vôo, e não voltará,
e erraria quem pedisse,
ou que o tempo já partisse,
ou viesse o tempo já
.

Viver em perplexa vida,
ora esperando, ora temendo,
é morte mui conhecida,
e é muito melhor morrendo
buscar para a dor saída.
Eu preferia morrer,
mas não o devo querer,
pois com discurso melhor
me dá a vida o temor
do que está p’ra acontecer.


CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XVIII.

domingo, 3 de julho de 2011

Dos Filhos e Poesias




Contexto: No caminho para Saragoça, no capítulo XVI, Dom Quixote encontrara o fidalgo Dom Diogo de Miranda que passava de largo a estrada, e que resolveu fazer companhia ao Cavaleiro da Triste figura, pelo que restava de caminho, ao que entreteram-se em colóquios, e nessas práticas Dom Diogo fizera Dom Quixote saber de sua angústia ao observar que seu filho encaminhara-se para as ciências não muito úteis, segundo ele, da poesia e filologia, ao que Dom Quixote redargüiu-lhe nestes termos.



— Os filhos, senhor — respondeu D. Quixote — são pedaços das entranhas de seus pais, e sejam bons ou maus, sempre se lhes há de querer como às almas que nos dão vida; aos pais cumpre encaminhá-los desde pequenos pela senda da virtude, da boa criação e dos bons e cristãos costumes, para que sejam bordão da velhice de seus pais e glória da sua posteridade, quando forem crescidos; e enquanto a forçá-los que estudem esta ou aquela ciência não o tenho por acertado, ainda que o persuadir-lho não será danoso; e, quando não se tem de estudar para
pane lucrando, sendo o estudante tão venturoso, que recebesse do céu pais que lhe deixem haveres, seria eu de parecer que o não impedissem de seguir a ciência para que se inclina, e ainda que a da poesia é menos útil do que deleitosa, não é das que desonram os que a possuem.

A poesia, no meu entender, senhor fidalgo, é como uma donzela meiga, juvenil e formosíssima, que se desvelam em enriquecer, polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras ciências, e todas com ela se hão de autorizar; mas esta donzela não quer ser manuseada, nem arrastada pelas ruas, nem publicada nas esquinas das praças, nem pelos desvãos dos palácios. É feita por uma alquimia de tamanha virtude, que quem souber tratá-la pode mudá-la em ouro puríssimo; não a há de deixar correr quem a tiver por torpes sátiras e desalmados sonetos; não se há de vender de nenhum modo, a não ser em poemas heróicos, em lamentáveis tragédias ou em comédias alegres e artificiosas; não se há de deixar tratar pelos truões, nem pelo vulgo ignorante, incapaz de conhecer nem de estimar os tesouros que nela se encerram. E não penseis, senhor, que chamo aqui vulgo somente à gente plebéia e humilde, que todo aquele que não sabe, ainda que seja senhor e príncipe, pode e deve ser contado entre o vulgo; e assim, quem cuidar a poesia com estes requisitos, terá fama e nome estimado em todas as nações civilizadas do mundo.

E enquanto ao que dizeis, senhor, de vosso filho não ter em grande estima a poesia castelhana, entendo que não anda nisso com muito acerto, e a razão é esta: o grande Homero não escreveu em latim, porque era grego; nem Virgílio escreveu em grego, porque era latino. Enfim, todos os poetas antigos escreveram na língua que beberam com o leite e não foram procurar os idiomas estrangeiros para manifestar a alteza dos seus conceitos; e, sendo isto assim, era razoável que este costume se estendesse por todas as nações, e que se não menosprezasse o poeta alemão que escreve na sua língua, nem o castelhano, nem o próprio biscainho que escreve na sua; mas vosso filho, senhor, ao que imagino, não estará de mal com a poesia moderna, mas sim com os poetas que são meros versejadores castelhanos, sem saberem outras línguas, nem outras ciências que adornem, despertem e auxiliem o seu natural impulso; e ainda nisto pode haver erro, porque, segundo opiniões sensatas, o poeta nasce poeta, e com essa inclinação que o céu lhe deu, sem mais estudo nem artifício, compõe coisas que fazem verdadeiro quem disse:
"Est Deus in nobis". Também digo que o poeta natural, que se auxiliar com a arte, se avantajará muito ao poeta que só por saber a arte o quiser ser. O motivo disto é que a arte não vence a natureza, mas aperfeiçoa-a; de forma que a natureza e a arte, mescladas, produzirão um perfeitíssimo poeta.

Em conclusão, senhor fidalgo, entendo que Vossa Mercê deve deixar seguir seu filho a estrela que o chama, que, sendo ele tão bom escolar como deve de ser, e tendo já subido felizmente o primeiro degrau das ciências, que é o das línguas, com elas subirá por si ao cúmulo das letras humanas, que tão bem parecem num cavaleiro de capa e espada, e o adornam, honram e engrandecem, como as mitras aos bispos, ou como as garnachas aos jurisconsultos peritos. Ralhe Vossa Mercê com seu filho, se fizer sátiras que prejudiquem as honras alheias, e castigue-o e rasgue-lhas; mas, se fizer prédicas à moda de Horácio, em que repreenda os vícios em geral, como ele tão elegantemente o fez, louve-o, porque é lícito ao poeta escrever contra a inveja e dizer nos seus versos mal dos invejosos, e contra os outros vícios, sem designar pessoa alguma; mas há poetas que, para dizerem uma malícia, se arriscam a ser degredados para as ilhas do Ponto[1]. Se o poeta for casto nos seus costumes, sê-lo-á também nos seus versos; a pena é a língua da alma: como forem os conceitos que nela se gerarem, assim serão os seus escritos; e quando os reis ou príncipes vêem a milagrosa ciência da poesia em sujeitos prudentes, virtuosos e graves, honram-nos, estimam-nos e enriquecem-nos, e ainda os coroam com as folhas da árvore que o raio não ofende, como em sinal de que por ninguém hão-de ser ofendidos os que virem com os seus lauréis honrada e adornada a sua fronte.


[1] - Alusão ao desterro de Ovídio no mar Negro, se bem que o poeta não foi desterrado às ilhas, mas as margens do Ponto.



CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XVI.