quinta-feira, 24 de junho de 2010

Disperato amore


Zetazeroalfa, Disperato amore.

Resenha - de Adriano Scianca

«Senza amore non c'è buona distruzione»
Gilles Deleuze

Creio que Zetazeroalfa tenha sempre razão. Literalmente. Creio que Zetazeroalfa seja qualquer coisa mais que um grupo. Não é somente música, tampouco apenas política. É qualquer coisa mais que isso. É um quilo do teu coração, um hectolitro do seu sangue, um pedaço da tua pele. Zetazeroalfa tem as tuas mesmas cicatrizes, é uma parte da tua história. Esse é seu segredo. Zetazeroalfa permanece a trilha sonora de nossas vidas, ou talvez - mais plausivelmente - sejam nossas vidas a fazerem a trilha sonora de Zetazeroalfa. Creio que Zetazeroalfa tenha sempre razão. Porque não é só música. É a missa em forma de uma vida, de um sentimento, de uma história. É a condução à evidência cristalina do senso recôndito de uma escolha, o obscuro pressentimento de uma vontade. Creio que Zetazeroalfa tenha sempre razão. Creio em Zetazeroalfa, Creio.

"Disperato Amore"(Amor desesperado) é um disco escrito em mar aberto, e como tal, lança mensagens em garrafas destinadas a serem transportadas pelas correntes e pelo destino. Algumas filões vermelhos interceptam-se: o mar, a solitude, o amor. O conceito aquático reverbera-se até mesmo no (belíssimo) libretto, no qual as principais capitais do Ocidente são fustigadas por uma violenta borrasca até que, por fim, são submersas pela água. Imagem post-schmittiana: Não há mais uma Terra a se opor ao mar. Agora tudo é fluído, não há mais um porto para se fazer reparos. Navigare necesse est. O mar é o desafio a se vencer, a resposta ao seu domínio é "Arremba sempre" (Ataca sempre). Toma a frente de sua época, assalta o futuro. Converte o veneno em remédio. Faz do mar a sua força. Torne-se pirata. "E zarparam com uma forte lei estreita em torno ao coração./ A condenação do teu grupo, a potência do esplendor." E assim é. Mesmo "Accademia della sassaiola" (Academia das pedrinhas), fala de rebeldes. Fala de uma revolta que vem de baixo, das ruas, daquilo que mais verdadeiro e autêntico existe contra as gaiolas de papel. Pouco importa que as "pedrinhas" sejam verdadeiras ou metafóricas. É a Intifada que existe dentro de você que conta.

A solidão. Aquela evocada em duas faixas instrumentais
(Scirocco e Nemesi). Atmosfera glacial, desértica. Que reconduzem o homem a si mesmo. O último trabalho da banda era todo centrado sobre a comunidade, como era justo que fosse, para um ambiente que se estava encontrando e reconhecendo. Aqui, ao invés, reemerge o singular. Não um singular descarnado, apátrida, naufrago. Trata-se, ao contrário, do homem que aprendeu a encarar a si mesmo e pôde assim tornar a encontrar o seu lugar entre outros homens que completaram o mesmo percurso. É esta a liberdade. É esta a responsabilidade. É este o sentido de "A modo mio"(A meu modo): "E agora faço a modo meu./ Se falhar, pago eu". É uma grandíssima lição. É, mais ainda, a essência inerente de EstremoCentroAlto: fim da alienação, retornar a si mesmo. Conduzir a própria batalha, não a batalha de outrem. Combater até o fim. E "Fino All'ultimo" (Até o fim) é próprio uma das mais preciosas faixas de Disperato Amore. Um hino a Itália de sabor vagamente pavoliniano, uma sorte de "Guerra", porém, menos nibelúngica, mais contida e lúcida. Uma consciência cintilante: a batalha continua "até o último soldado".

O amor. A paixão ardente por uma idéia, por uma terra, por um símbolo, por uma comunidade. Por uma pessoa, mesmo. O amor desesperado não exclui, mas compreende o amor entre um homem e uma mulher [nos fala uma surpreendente, quase
vascorossiana "Anche se è gioverdì"(Ainda que seja quinta-feira)], sob a condição que, homem e a mulher estejam à altura da flama que desdenha toda vulgaridade pequeno-burguesa, narcisística e individualista. Não, não há lugar aqui, para o amoreco do último homem zaratustriano. É por isso que se fala de um amor "desesperado": por que implica sempre colocar-se em jogo. Implica um estilo. E de estilo fala "Rose rosse delle camicie nere". Do estilo de uma vida, uma vida a entregar "como se arremessa uma flor". Viver assim, é amor. Amor libado a si mesmo. E um imperativo existêncial: "Constrói sem pausa, em um folêgo/ um castelo na rocha, um dique no destino". A faixa título então, possuí amor já em seu nome. É o amor por uma escolha, uma escolha que vai até o limite, e além. Amor é A-mor, aquilo que vence a morte. Por isso, o verdadeiro amor é eterno. "Disperato Amore" fala de quem, no "branco e negro de uma estação", cultivou seu amor pela Itália de maneira desesperada, sem atenuações, porque "combater é um destino". Essa escolha nos fala, essa escolha é a nossa. O amor desesperado é a capacidade de não perder o senso de conexão lógica e histórica. A força que existe imanente a idéia, que é uma única coisa com aqueles que passaram e com os que passarão. É por isso que nós não somos nem os vivos, nem os mortos, mas somos além da vida e além da morte. Somos aqueles que vão para o mar.


E aqueles que vão para o mar, se fiam e se reconhecem entre si. E eis que na "
I guerrieri della scolopendra" (Os guerreiros da centopéia) podes descobrir a tua mesma luta, talvez mesmo tua pátria espiritual. Falamos dos Karen e de sua batalha heróica contra a Birmânia, contra a floresta, contra a droga, contra a China, contra o Ocidente, e contra os "ocidentes" da alma. O adágio "A minha pátria é onde se combate pela minha idéia" não é sempre verdadeiro. Por vezes é somente uma fuga de si mesmo, dos que não tem nem uma idéia, nem uma pátria. Uma viagem mental, um "trip". Vestes de alienação e de auto-afirmação. Acontecem outras vezes, ao invés, uma especial alquimia. Ocorre que na recíproca luta, se reconheçam iguais e diferentes, ao mesmo tempo. Falo de uma alquimia encarnada, pro-ativa, experimentada na lama das trincheiras. Que pode ser diversa, embora na mesma guerra. Assim, os Karen combatem também por nós. A mesma guerra, o mesmo inimigo. E nós combatemos também por eles.

Existe ainda uma forma ulterior de amor. É a constância de uma irmandade, um vínculo de destino. "
Andrà tutto bene"(tudo correrá bem) fala de nós, do nosso caminho. Um percurso à aderir e prosseguir, a despeito de tudo e de todos. Correrá tudo bem porque nós decidimos assim e assim deve ser. Fodam-se todos, nós iremos até o fim. Esta faixa, a melhor do album, convida à coragem e à audácia, à vontade que move montanhas. À um jubiloso e sereno amor fati. "Andrà tutto bene", diz a voz que te indica uma estrada onde tudo o que vês são somente obstáculos, o sol onde dominam as nuvens. É a voz de quem deseja mais, ousa mais, crê mais. De quem combateu, amou, pagou, conquistou mais. A voz que fala sem voz. E sabemos que enquanto a seguirmos, não temos nada a temer.

Enfim, Nietzsche: "Deixamos a terra e embarcamos! Rompemos as pontes - melhor, rompemos com a terra às nossas costas! Doravante, pequeno navio, é preciso muita atenção! Ao teu lado, se estende o oceano; é bem verdade que ele não ruge sempre e, às vezes, se desdobra mesmo como uma seda, como ouro, e como sonhos de bondade. Mas sobrevirão horas em que reconhecerás que ele é ilimitado (unendlich) e que não existe nada mais terrível do que infinito (unendlichkeit). Oh, pobre pássaro que um dia se sentiu livre e que agora se bate contra as paredes desta gaiola! Ai de ti, se a nostalgia do país te acometer, como se lá tivesse havido mais liberdade, - enquanto que agora não existe mais 'terra'". Boa viagem, Zetazeroalfa. Correrá tudo bem.





sexta-feira, 4 de junho de 2010

Dulcinéia

Dulcinea del Toboso, by Charles Robert Leslie

CARTA DE D. QUIXOTE A DULCINÉIA DEL TOBOSO
“Soberana e alta senhora! O ferido do gume da ausência, e o chagado nas teias do coração, dulcissima Dulcinéia del Toboso, te envia saudar, que a ele lhe falta. Se a tua formosura me despreza, se o teu valor me não vale, e se os teus desdéns se apuram com a minha firmeza, não obstante ser eu muito sofrido, mal poderei com estes pesares, que, além de muito graves, já vão durando em demasia. O meu bom escudeiro Sancho te dará inteira relação, ó minha bela ingrata, amada inimiga minha, do modo como eu fico por teu respeito. Se te parecer acudir-me, teu sou; e, se não, faze o que mais te aprouver, pois com acabar a minha vida terei satisfeito à tua crueldade e ao meu desejo.

Teu até à morte

O Cavaleiro da Triste Figura.

Cervantes e Saavedra, Miguel de, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, Volume I, Capitulo XXV.


Aldonsa del Toboso Pastel by Tayde Salazar

"— Não poderei afirmar se a minha doce inimiga gosta, ou não, de que o mundo saiba que eu a sirvo. Só posso dizer, em resposta ao que tão res­pei­to­sa­men­te se me pede, que o seu nome é Dulcinéia, sua pátria Toboso, um lugar da Mancha; a sua qualidade há-de ser, pelo menos, Princesa, pois é Rainha e senhora minha; sua formosura sobre-humana, pois nela se realizam todos os impossíveis e quiméricos atributos de formosura, que os poetas dão às suas damas; seus cabelos são ouro; a sua testa campos elísios; suas sobrancelhas arcos celestes; seus olhos sóis; suas faces rosas; seus lábios corais; pérolas os seus dentes; alabastro o seu colo; mármore o seu peito; marfim as suas mãos; sua brancura neve; e as partes que à vista humana traz encobertas a honestidade são tais (segundo eu conjecturo) que só a discreta consideração pode encarecê-las, sem poder compará-las."


Cervantes e Saavedra, Miguel de, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, Volume I, Capitulo XIII.



No espanhol da época o nome "Dulcinéia" era algo como uma variante garbosa da palavra "doçura". Destarte, Dulcinéia é uma pessoa inteiramente ficcional por quem Dom Quixote luta incansavelmente. Até nos dias atuais, referenciar alguém como sua "Dulcinéia", implica ter devoção e amor incondicionais por ela, e particularmente amor não-correspondido.

"(...) Na versão para teatro(mas não no filme de 1972), o pároco local canta uma canção chamada "A cada um, sua Dulcinéia", na qual ele reflete que, embora Dulcinéia não exista, a idéia dela é o que mantém Dom Quixote vivo e disposto em sua busca."

http://en.wikipedia.org/wiki/Dulcinea

O amor é uma religião militar, a religião da terra, uma fé una compartilhada pelos espíritos fortes e nobres. Fora com os que não possuem o fervor e a fortitude necessárias para cumprir os desígnios do amor, o amor não é para os covardes, vãos ou levianos, o amor puro é gema rara e obscura que habita nas paragens recônditas de uma sociedade de morte como a atual, em que, o que se tem sob a palavra "amor" não passa de desejo animal e medo de solidão.

Que nós, os aristocratas do espírito nos reunamos sob a égide do amor puro, que o amor seja nossa única lei, verdadeira, indestrutível, e banhados na calidez dessa fé possamos nos manter limpos, malgrado vivamos no turbilhão de paixões e efemeridades do mundo moderno. Mantemo-nos na solitude das alturas respirando o ar rarefeito à 6.000 pés de altitude, pela eternidade vindoura!

Amor vincit omnia.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Chamfort

Que o conhecedor do homem e da multidão, como foi Chamfort, que se colocou ao lado da multidão em vez de ficar à parte, em uma posição de defesa e de renúncia filosófica, é algo que só posso explicar da seguinte forma, que existia nele um instinto que era mais forte do que a sua sabedoria e que nunca foi satisfeito: o ódio pela nobreza de sangue, um ódio antigo, talvez herdado de sua mãe, que se podia explicar muitíssimo bem nela, e para ele sagrado por piedade filial; uma espécie de rancor que datava da sua infância e que nele esperava a hora de vingar a mãe. E eis que a vida e o seu gênio, e que, sobretudo talvez, o sangue do pai que corria em suas veias, o levaram a arregimentar-se durante longos e longos anos, nas fileiras dessa nobreza e a sentir-se seu igual. Mas acaba por não poder continuar a suportar o seu próprio aspecto, o "aspecto" do velho homem sob o velho regime; e foi dominado por violenta paixão de penitência que o obriga a vestir o traje da plebe como uma espécie de camisa de cilício!


O seu pecado tinha consistido em negligenciar o ódio. Se tivesse permanecido um pouco mais filósofo, a revolução teria perdido o seu espírito, a sua aresta trágica, o seu aguilhão mais acerado que a caráterizaram; seria considerada como um acontecimento muito mais estúpido e seduziria menos os espíritos. Mas o ódio e a vingança de Chamfort educaram uma geração inteira: as pessoas mais sublimes passaram por sua escola. Considera-se que Mirabeau olhava Chamfort de baixo, como um seu superior, mais completo, de quem esperava ou sofria os impulsos, os conselhos, as sentenças... Mirabeau que, na ordem humana, ultrapassa tão longe os primeiros de todos os grandes homens de ontem e de hoje! Não será singular que, apesar de tal amigo, apesar de semelhante advogado - dispomos das cartas que ele recebia de Mirabeau - o mais espiritual dos moralistas tenha permanecido alheio aos franceses, tal como Sthendal, que tinha talvez os ouvidos e os olhos mais ricos de pensamentos entre os franceses deste século? Será porque havia em Sthendal demasiados elementos ingleses e alemães para que o parisiense o suportasse?

Chamfort, esse que é um ser rico em profundezas e em interioridades, o homem sombrio, sofredor, ardente, um pensador que via no riso um remédio necessário contra a vida e que se julgava quase perdido no dia em que não tinha rido, pareceria mais italiano do que francês, parente de Dante e de Leopardi! Conhece-se as suas últimas palavras: "Ah, meu amigo", disse ele a Sieyès, "vou-me finalmente embora deste mundo, onde é necessário que o coração se parta ou se endureça...". Estas não são certamente as palavras de um francês moribundo.


Nietzsche, F.W., Gaia Ciência, Livro Segundo, Aforisma 95.