quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Do Imaculado Conhecimento


“Ontem a lua, ao nascer, pareceu-me que ia dar à luz um sol: tão avultada e prenhe jazia no horizonte.

Mentia, porém, com a sua prenhez, e mais julgaria a lua homem do que mulher.

Claro que também é muito pouco homem este tímido notâmbulo. Anda pelos telhados com a consciência turva.

Que a solitária lua está cheia de cobiça e de inveja: cobiça a terra e todas as alegrias dos que amam.

Nada; não me agrada esse gato dos telhados; previnem-me todos os que espreitam as janelas voltadas.

De manso e silencioso anda por alfombras de estrelas; mas eu detesto todos os pés cautelosos em que nem mesmo as esporas tilintam.

Os passos do homem leal falam; mas o gato anda em segredo. Vede: a lua caminha deslealmente como o gato.

A vós, hipócritas afetados, que procurais o “conhecimento puro”, ofereço esta parábola. A vós eu chamo lascivos.

Vós também amais a terra e tudo quanto é terrestre: compreendi-vos bem! O vosso amor, porém, envergonha-se com uma consciência tortuosa: pareceis-vos com a lua.

O vosso espírito convenceu-se de que deve menosprezar tudo quanto é terreno; mas não se convenceram as vossas entranhas. Elas são, todavia, o mais forte que há em vós.

E agora o vosso espírito envergonha-se de obedecer às vossas entranhas, e segue caminhos escusos e ilusórios para se livrar da sua própria vergonha.

“Para mim seria a coisa mais elevada (assim diz a si mesmo o vosso falso espírito) olhar a vida sem cobiça, e não como cães, com a língua de fora.

Ser feliz na contemplação, com a vontade morta, isento de capacidade e de apetite egoísta, frio de corpo, mas com os olhos embriagados de lua.

Para mim seria o melhor (assim se engana a si mesmo o enganado) amar a terra como a luz a ama, e tocar na sua beleza apenas com os olhos.

Eis o que eu chamo o imaculado conhecimento de todas as coisas: não querer das coisas mais do que poder estar diante delas”.

Hipócritas afetados e lascivos! Falta-vos a inocência no desejo, e por isso caluniais o desejo!

Vós não amais a terra como criadores, como geradores satisfeitos de criar.

Onde há inocência? Onde há vontade de engendrar. E o que criar qualquer coisa superior a si mesmo, esse, para mim, tem a vontade mais pura.

Onde há beleza? Onde é mister que eu queira com toda a minha vontade, onde eu quero amar e desaparecer, para que uma imagem não fique reduzida a uma simples imagem.

Amar e desaparecer: são coisas que andam a par há eternidades. Querer amar é também estar pronto a morrer. Assim vos falo eu, covardes!

Mas o vosso olhar ambíguo e afeminado quer ser contemplativo! E para vós, que maculais os nomes nobres, o que se pode tocar com olhos pusilânimes deve-se chamar “belo!”

A vossa maldição, porém, — ó! imaculados que procurais o simples conhecimento! — há de ser nunca chegardes a dar à luz, por muito avultados e prenhes que apareçais no horizonte.

Na verdade, encheis a boca de palavras nobres, e havíamos de crer que o vosso coração transborda, embusteiros?

As minhas palavras, porém, são grosseiras, desprezadas e informes: a mim agrada-me recolher o que nos vossos festins cai da mesa.

Com as minhas palavras chego sempre a dizer a verdade aos hipócritas! Sim, as minhas arestas, as minhas conchas e as minhas folhas espinhosas devem fazer-vos cócegas nos narizes, hipócritas!

Sempre há ar viciado em redor de vós e dos vossos festins: porque no ar flutuam os vossos lascivos pensamentos, as vossas mentiras e as vossas dissimulações.

Atreveis-vos, pois, em primeiro lugar a ter fé em vós mesmos — em vós e nas vossas entranhas! — o que não tem fé em si mesmo mente sempre.

Pusesteis diante de vós a máscara de um deus, homens “puros”: a vossa ignominiosa e rasteira larva ocultou-se detrás da máscara de um deus.

A verdade é que vos enganais, “contemplativos!” Zaratustra também foi joguete das vossas divinas peles; não suspeitou que eram serpentes que enchiam essa pele.

Nos vossos divertimentos julgava eu ver divertir-se a alma de um deus, simples investigadores! Eu não conhecia arte melhor que os vossos artifícios!

A vossa distância ocultava-me imundícies de serpente e maus cheiros, e eu não sabia que por aqui rondava, lasciva, a astúcia de um lagarto.

Abeirei-me, porém, de vós: então chegou a mim a luz — e agora chega a vós; — os amores da lua estão no seu declive.

Olhai-a. Aí a tendes surpreendida e pálida ante a aurora!

Porque já surge ardente a aurora: o seu amor pela terra aproxima-se! Todo o amor solar é inocência e desejo do criador.

Vede como a aurora passa impaciente pelo mar! Não sentis a sede e o cálido alento do seu amor?

Quer aspirar o mar e beber as suas profundidades, e o desejo do mar eleva-se com mil ondas.

Porque o mar quer ser beijado e aspirado pelo sol; quer tornar-se ar e altura e senda de luz também.

Eu, à semelhança do sol, como a vida e todos os mares profundos.

E tal é para mim o conhecimento: todo o profundo deve subir à minha altura”.

Assim falava Zaratustra.