quinta-feira, 3 de junho de 2010

Chamfort

Que o conhecedor do homem e da multidão, como foi Chamfort, que se colocou ao lado da multidão em vez de ficar à parte, em uma posição de defesa e de renúncia filosófica, é algo que só posso explicar da seguinte forma, que existia nele um instinto que era mais forte do que a sua sabedoria e que nunca foi satisfeito: o ódio pela nobreza de sangue, um ódio antigo, talvez herdado de sua mãe, que se podia explicar muitíssimo bem nela, e para ele sagrado por piedade filial; uma espécie de rancor que datava da sua infância e que nele esperava a hora de vingar a mãe. E eis que a vida e o seu gênio, e que, sobretudo talvez, o sangue do pai que corria em suas veias, o levaram a arregimentar-se durante longos e longos anos, nas fileiras dessa nobreza e a sentir-se seu igual. Mas acaba por não poder continuar a suportar o seu próprio aspecto, o "aspecto" do velho homem sob o velho regime; e foi dominado por violenta paixão de penitência que o obriga a vestir o traje da plebe como uma espécie de camisa de cilício!


O seu pecado tinha consistido em negligenciar o ódio. Se tivesse permanecido um pouco mais filósofo, a revolução teria perdido o seu espírito, a sua aresta trágica, o seu aguilhão mais acerado que a caráterizaram; seria considerada como um acontecimento muito mais estúpido e seduziria menos os espíritos. Mas o ódio e a vingança de Chamfort educaram uma geração inteira: as pessoas mais sublimes passaram por sua escola. Considera-se que Mirabeau olhava Chamfort de baixo, como um seu superior, mais completo, de quem esperava ou sofria os impulsos, os conselhos, as sentenças... Mirabeau que, na ordem humana, ultrapassa tão longe os primeiros de todos os grandes homens de ontem e de hoje! Não será singular que, apesar de tal amigo, apesar de semelhante advogado - dispomos das cartas que ele recebia de Mirabeau - o mais espiritual dos moralistas tenha permanecido alheio aos franceses, tal como Sthendal, que tinha talvez os ouvidos e os olhos mais ricos de pensamentos entre os franceses deste século? Será porque havia em Sthendal demasiados elementos ingleses e alemães para que o parisiense o suportasse?

Chamfort, esse que é um ser rico em profundezas e em interioridades, o homem sombrio, sofredor, ardente, um pensador que via no riso um remédio necessário contra a vida e que se julgava quase perdido no dia em que não tinha rido, pareceria mais italiano do que francês, parente de Dante e de Leopardi! Conhece-se as suas últimas palavras: "Ah, meu amigo", disse ele a Sieyès, "vou-me finalmente embora deste mundo, onde é necessário que o coração se parta ou se endureça...". Estas não são certamente as palavras de um francês moribundo.


Nietzsche, F.W., Gaia Ciência, Livro Segundo, Aforisma 95.

2 comentários:

  1. Nietzsche!!! Meu filósofo favorito!!!
    Eu ainda nao li "A gaia ciência", mas pretendo!
    Inclusive meu cão se chama Nietzsche!!!

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  2. Que coincidência, é o meu filósofo favorito também!
    Comecei a lê-lo com 16 anos por uma velha edição do Ecce Homo que minha mãe tinha e não parei mais.

    Interessante essa idéia do nome de cachorro, sempre tentei dar esse nome a algum cachorro aqui de casa, mas o pessoal nunca concordou, não sei porque, hehe. XD

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