segunda-feira, 27 de maio de 2013

Do filho do matrimônio

"Tenho uma pergunta para ti só, meu irmão. Arrojo-a como uma sonda à tua alma, a fim de lhe conhecer a profundidade.

És moço e desejas filho e matrimônio. Eu, porém, pergunto. Serás tu homem que tenha o direito de desejar um filho?

Serás tu vitorioso, o vencedor de ti mesmo, o soberano dos sentidos, o dono das tuas virtudes?

É isso o que eu te pergunto.

Ou será que falam do teu desejo a besta e a necessidade física, ou o afastamento, ou a discórdia contigo mesmo?

Eu quero que a tua vitória e a tua liberdade suspirem por um filho. Deves erigir monumento vivente à tua vitória e à tua libertação.

Deves construir qualquer coisa que te seja superior.

Primeiro que tudo, porém, é preciso que te hajas construído a ti mesmo, retangular de corpo e alma.

Não deves só reproduzir-te, mas exceder-te! Sirva-te para isso o jardim do matrimônio!

Deves criar um corpo superior, um primeiro movimento, uma roda que gire sobre si; deves criar um criador.

Matrimônio: chamo assim à vontade de dois criarem um que seja mais do que aqueles que o criaram. O matrimônio é o respeito recíproco: respeito recíproco dos que coincidem em tal vontade.

Seja este o sentido e a verdade do teu matrimônio; mas isso a que os que estão demais, os supérfluos, chamam matrimônio, isso como se há de chamar?

Ai! Que pobreza de alma entre dois! Que imundície de alma entre dois! Que mísera conformidade entre dois!

A tudo isso chamam matrimônio, e dizem que contraem estas uniões no céu!

Pois bem! Eu não quero esse céu dos supérfluos. Não; eu não quero essas bestas presas com redes divinas!

Fique-se também por lá bem longe de mim esse Deus que vem coxeando abençoar aquilo que não uniu!

Não vos riais de semelhantes matrimônios!

Que filho não teria razão para chorar por causa de seus pais?

Certo homem pareceu-me digno e sensato para o sentido da terra, mas quando vi a mulher dele, a terra pareceu-me moradia de insensatos.

Sim; queria que a terra se convulsionasse quando se acasalam um santo e uma pata.

Tal outro partiu como herói em busca de verdades e não trouxe por colheita senão uma mentira engalanada. Chamam a isso o seu matrimônio.

Este era frio nas suas relações e escolhia ponderadamente; mas de uma só vez transtornou para sempre a sua sociedade. A isso chamam o seu matrimônio.

Aquele procurava uma servente com as virtudes de um anjo; mas daí a pouco tornou-se servente de uma mulher, e agora precisava ele tornar-se anjo.

Vejo agora todos os compradores muito senhores de si e com olhos astutos; mas até o mais astuto compra a sua mulher às cegas.

A muitas loucuras pequenas chamais amor. E o vosso matrimônio termina muitas loucuras pequenas para as tornar uma loucura grande.

O vosso amor à mulher e o amor da mulher pelo homem, ó! seja compaixão para deuses dolentes e ocultos! Duas bestas, porém, quase sempre se adivinham.

O vosso melhor amor, contudo, ainda não é mais do que uma imagem extasiada e um ardor doloroso. É um facho que vos deve iluminar para caminhos superiores.

Um dia deverá o vosso amor elevar-se acima de vós mesmos! Aprendei, pois, primeiro a amar! Por isso vos foi preciso beber o amargo cálice do vosso amor.

Existe amargura no cálice do melhor amor; assim vos faz desejar o Super-homem; assim tendes sede do criador.

Sede do criador, seta e desejo do Super-homem; diz-me, meu irmão, é essa a tua vontade do matrimônio?

Santa é para mim tal vontade, santo tal matrimônio"

Assim falava Zaratustra.

NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, Primeira Parte, Do filho do matrimônio.

domingo, 19 de maio de 2013

Superpopulação

Na realidade, o ajuntamento humano nas cidades modernas é em grande parte responsável por não sermos mais capazes de distinguir o rosto do próximo nessa fantasmagoria de imagens humanas que mudam, se superpõem e se apagam continuamente. Diante dessa multidão e dessa promiscuidade nosso amor pelos outros se desgasta a tal ponto que o perdemos de vista. Os que querem ainda ter para com seus semelhantes sentimentos benévolos, são obrigados a se concentrar em um pequeno número de amigos. Pois somos feitos de modo que nos é impossível amar toda a humanidade, apesar da justeza dessa exigência moral. Somos portanto obrigados a fazer uma escolha, ou seja, a manter a distância, emocionalmente, numerosos seres dignos da nossa amizade. "Not to get emotionally involved" é um dos principais cuidados de muitos habitantes das grandes cidades. É um processo absolutamente inevitável para cada um de nós, mas já manchado de desumanidade. Lembra a atitude dos antigos plantadores americanos que tratavam com muita humanidade os negros encarregados do serviço da casa, enquanto consideravam os escravos das plantações como animais domésticos de algum valor. Levando mais adiante esse tipo de defesa voluntária contra as relações humanas, veremos que, de conformidade com os fenômenos de exaustão do sentimento, dos quais falaremos mais adiante, ele conduz às espantosas manifestações de indiferença que os jornais relatam diariamente. Quanto mais somos levados a viver na promiscuidade das massas, mas cada um de nós se sente acuado pela necessidade de "not to get involved". É assim que hoje em dia os ataques a mão armada, o assassinato e o estupro podem acontecer em plena luz do dia, justamente no centro das grnade cidades, nas ruas cheias de gente, sem que sequer um transeunte intervenha.

Amontoar os homens em espaços limitados leva de forma indireta a atos de desumanidade provocados pelo esgotamento e desaparecimento progressivo dos contatos, e é a causa direta de todo um comportamento agressivo. Numerosas experiências realizadas em animais nos ensinaram que a agressividade entre congêneres pode ser estimulada amontoando-os em espaço limitado. Quem nunca teve experiência semelhante, quer em cativeiro, quer numa situação semelhante,  em que muitas pessoas vivem juntas por força das circunstâncias, não pode avaliar o grau de intensidade que chega a irritabilidade. E se a pessoa tenta se controlar, se se esmera no contato de cada dia, de cada hora, para ter uma atitude delicada, e portanto amigável, para companheiros pelos quais não tem qualquer amizade, a situação se torna um suplício. A falta de amabilidade generalizada, que podemos observar em todas as grandes cidades, é claramente proporcional à densidade das massas humanas aglomeradas em determinado lugar. Atinge proporções aterradoras nas grandes estações, ou nos terminais de Nova York, por exemplo.

A superpopulação contribui diretamente para gerar todos os problemas, todos os fenômenos de decadência que estudaremos nos sete capítulos seguintes. Acreditar na possibilidade de se produzir, graças a um "condicionamento" apropriado, um novo tipo de homem, armado contra as consequências nefandas do empilhamento num espaço limitado, me parece uma ilusão perigosa.

Konrad Lorenz, Civilização e Pecado, Superpopulação, 1974