sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Um exército derrotado




Wir haben den Boden mit Blut getränkt
Nós embebemos o solo com sangue
Unsere Pferde durch einsame Weiten gelenkt
Nossos cavalos por solitárias vastidões cavalgaram
Glaubten uns verloren
Acreditando-nos derrotados
In stürmischer Nacht
Na noite tempestuosa
Und niemand hat uns’rer Seelen gedacht
Ninguém tem nossas almas em seus pensamentos

Durch Sturm und Schlamm
Através de tempestade e lama
Sind wir gefahren
Nós fomos conduzidos
Durch dieses Land
Através desta terra
Verwüstet - verbrannt
Devastada - queimada
Und niemand weiss um unsere Qualen
E ninguém conhece nossas agonias
Verloren - verbannt
Condenados - Exilados
Vergessen - verkannt
Esquecidos - Incompreendidos

Im Göttersturm fanden wir unser Ende
Na tempestade dos deuses encontramos nosso fim
In Not und Kampf
Na aflição e luta
In der Weltenwende
No crepúsculo dos mundos
Verzweiflung und Ohnmacht in blutigem Reigen
Desespero e desalento num baile sangrento
Dann nur noch Stille und Kälte und Schweigen
Depois apenas quietude e frio e silêncio.

Und einsam
E solitários
Liegen wir begraben
Aqui jazemos
In fernem Land
Em terras longínquas
Entwurzelt - verbrannt
Desterrados - incinerados
Und niemand weiss um unsere Taten
E ninguém conhece os nossos feitos
Verloren - verbannt
Condenados - Exilados
Vergessen - verkannt
Esquecidos - Incompreendidos

Wir liegen verlassen
Jazemos abandonados
Im Schatten der Eiche
Na sombra do carvalho
Selbst Treu’ uns niemals zum Ruhme gereichte
Certos de que a glória jamais será nossa
Wir blieben zurück
Nós ficamos para trás
Man kennt die Namen nicht mehr
As pessoas não conhecem nossos nomes mais
Verschmäht - vergessen
Rejeitados - Esquecidos
Ein verlorenes Heer
Um exército derrotado

Durch Steppe und Regen
Pelas estepes e chuvas
Sind wir gefahren
Fomos conduzidos
Durch dieses Land
Por esta terra
Verwüstet - verbrannt
Devastada - queimada
Und niemand weiss um unsere Qualen
E ninguém conhece nossas agonias
Verloren - verbannt
Condenados - Exilados
Vergessen - verkannt
Esquecidos - Incompreendidos

Und einsam
E solitários
Liegen wir begraben
Aqui jazemos
In fernem Land
Em terras longíquas
Entwurzelt - verbrannt
Desterrados - incinerados
Und niemand weiss um unsere Taten
E ninguém conhece os nossos feitos
Verloren - verbannt
Condenados - Exilados
Vergessen - verkannt
Esquecidos - Incompreendidos

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Brisa de verão



Van uit een nieuwe wereld treedt
De um novo mundo surgira
een man mij aan met enge kleed,
À mim um homem com tétricas vestes,
schittrend zooals ik nimmer zag,
Fulgente como eu jamais vira,
met 't hoofd zoo stralend als de dag.
Com a cabeça luzente como o dia.

Hij heeft geen enkel sieraad aan
Ele não possuia nenhum resquício
van slaafschheid en geen enklen waan,
De servitude ou engano.
maar hij is zuiver als een man
Mas ele é puro como um homem
naakt opgegroeid maar wezen kan.
Sem posses criado, mas fiel a si.

Hij heeft den arm in zuivre vuist,
Em seu braço um punho imaculado,
hij heeft het been tot zuivren voet,
Em suas pernas pés impolutos,
en om het trotsch gelaat, gekuischt,
Em sua briosa face, límpida,
hangt stil en hoog een sterke gloed.
Plácida e altaneira crepita uma poderosa flama.

Van uit een nieuwe wereld treedt
De um novo mundo surgira
een vrouw mij toe met hangend kleed,
Uma mulher em um vestido esvoaçante
zoo helder als ik nimmer zag,
Resplandecente como eu jamais vira,
het oog zoo stralend als de dag.
Seus olhos tão claros como o dia.

Zij heeft geen enkel sieraad aan
Ela não possuia nenhum traço
van schuwheid, en geen enklen waan,
De timidez, ou tampouco de delusão,
maar zij is zuiver als een glas,
Mas ela é pura como o cristal,
alsof ze zoo geboren was.
Como se da pureza nascida fosse.

Haar arm is in een zuivren hoek,
Seus braços em graciosos angulos,
in schoone stralen valt haar doek,
Belamente descaidos em suas vestes,
en om haar schoon gelaat gezond
E em seu semblante belo e jovial.
speelt 't helderst licht van keel en mond.
Radiantes luzes emanavam da boca e garganta.

Herman Gorter

John Liston Byam Shaw, The Woman, the Man, and the Serpent ~ 1911

terça-feira, 24 de julho de 2012

Untitled



Tu vieni a me con le tue armi
Tu vens a mim, com as tuas armas
con le tue bandiere
Com as tuas bandeiras

non piegherai la testa
Não abaixarás a cabeça
non guarderai a terra
Não olharás para o chão
porterai il tuo orgoglio fino al mio altare.
Levarás teu orgulho ao meu altar.
Chi sei tu?
Quem és tu?
Che vuoi tu?
O que tu desejas?
Come intendi riverirmi?
Como pretendes reverenciar-me?

Chi vuole essere con me sarà il più abile
Quem quiser estar comigo será o mais hábil 
Chi vuole essere con me non sarà mai noto
Quem quiser estar comigo jamais será notado.
Chi vuole essere con me sarà indispensabile
Quem quiser estar comigo será indispensável
Chi vuole essere con me non verrà mai premiato
Quem quiser estar comigo jamais será premiado.

Rinuncerai al tuo nome
Renunciarás ao teu nome
Rinuncerai al tuo volto
Renunciarás ao teu rosto
Rinuncerai all'arbitrio, all'orgoglio
Renunciarás ao arbítrio, ao orgulho
Tu mi darai la voce 
Tu me darás a voz
Io ti darò il dolore
Eu te darei a dor
Tu mi darai la luce, l'Onore!
Tu me darás a luz, a honra!

Chi vuole essere con me avrà la mia bandiera
Quem quiser estar comigo possuirá a minha bandeira
Chi vuole essere con me non ne avrà mai più altre
Quem quiser estar comigo, para si não haverá outro.
Chi vuole essere con me stasera
Quem quiser estar comigo, esta noite
resterà con me per sempre
Permanecerá comigo, para sempre
a me, per me, con me, per sempre.
A mim, por mim, comigo, para sempre

sábado, 21 de julho de 2012

Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben

Tradicionalismo: embota os sentidos do homem, estiola a vida mesma, muito embora provê raízes ao homem e um senso de pertencimento, sacraliza o passado seja ele bom ou não, e conserva por vezes coisas ou valores que não deveriam ser conservados, pontualmente. Tem sua utilidade, porém não deve dominar a sociedade.

Monumentalismo: Alimenta grandes almas e suas visões, num período de ostracismo, desespero ou cultura artificial, porém ao inflamar o homem e suas visões contra o mundo ou época, cega-o perante as circunstâncias e os métodos de sua situação hodierna, tenta-se recriar as causas para dar azo aos mesmos efeitos de outrora, reviver esses 'efeitos' artificialmente.

História Crítica: Libera o homem do jugo do passado 'ruim', porém libera-o do 'bom' passado outrossim, ata-o a seus contemporâneos, torna-o vil e injusto com a história, julgando o passado em função do presente, julgam... como se para isso tivessem autoridade... essa suposta 'objetividade' e 'frieza' com as quais se obrigam os historiadores modernos, esses operários coletores de documentos que não entendem e não podem entender o que estudam pois não está em sua natureza entender os feitos cometidos por homens de natureza diversa e especial.

A história não existe, existe sim um caos de circunstâncias, e motivos diversos brotados nos corações dos homens, completamente obscuros, mormente aleatórios e movimentados por quaisquer circunstâncias, não nos é permitido desvendar tais motivos por documentos.

A história não existe o que existe é um encadeamento de fatos projetados na realidade por motivos diversos incognitos, esse encadeamento é engendrado na cabeça dos historiógrafos, que assim pretender dar um caráter linear e coerente a história, o 'sentido histórico'.

Não existem leis históricas, essas leis se aplicam apenas as massas e as camadas inferiores da humanidade, são leis movidas a fome e ignorância. O homem excelente escapa a essas leis.

Não existe processo universal ou qualquer sentido histórico, esses conceitos absorvidos e operantes no hegelianismo. Um homem abandonar-se ao processo histórico universal significa rejeitar sua condição mesma humana volitiva e potente, ele se reduziria a ser parte da massa, um animal domesticado, eis o porque o entendimento histórico "científico" hegeliano-marxista é promovido nas universidades do mundo pelos Estados em detrimento de outros entendimentos.

O Estado é um meio, uma ferramenta, o homem não existe em função do meio, e sim o inverso.

Deus não existe... Ou existe? Provavelmente sim, porém a volição divina reduz-se as suas leis naturais(matemática, física), um Deus que não quer muito mais que essas leis e que não opera, não merece ser posto na equação das considerações hodiernas, o trabalho dele está feito, ele não nos concerne mais... A não ser artisticamente.

A questão niilista "para quê?" revela a mentalidade servil daqueles que necessitam de um mestre, orfãos de um poder. Responde-se isso com a Vontade Suprema inata. Não há nada atrás do homem, nada a frente, o sentido de si mesmo está em sua carne, sangue, ossos, cérebro e vontade, o sentido do homem é outorgado de si a si, nada mais.

Não há causa final, se houvesse já teria sido alcançada, o que existe é o infinito, in regressus e progressus, no infinito tudo aconteceu e voltará a acontecer, eternamente.

A história não existe. A utilidade da história para a vida transmuta-se apenas pela arte, a história torna-se então um modo de afirmação da vida. O viver supra-histórico, sem a arte, a história tem muito pouco valor para o homem.

Somente porque a massa adotou uma idéia ou religião durante muito tempo isso não depõe a favor do seu criador, pelo contrário.

O super-homem já surgiu em várias partes do globo, em diversas épocas, em diversas culturas. Célere como o raio, porém o trovão das suas gestas ainda ecoa.

O super-homem é desejável.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Sala dos Espelhos



Der junge Mann betrat eines Tages einen Spiegelsaal,
O jovem homem adentrou um dia a sala dos espelhos,
und entdeckte eine Spiegelung seines Selbst.
E descobriu uma imagem refletida de si.

Sogar die größten Stars
Até mesmo os maiores astros
entdecken sich selbst im Spiegelglas'.
Descobrem-se no cristal do espelho.

Manchmal sah er sein wirkliches Gesicht,
Algumas vezes, ele via seu rosto de sempre,
und manchmal einen Fremden, den kannte er nicht.
E outras vezes, um desconhecido, completamente estranho.

Sogar die größten Stars
Até mesmo os maiores astros
finden ihr Gesicht im Spiegelglas'.
Encontram seus rostos no cristal do espelho.

Manchmal verliebte er sich in seinem Spiegelbild',
Algumas vezes ele se apaixonava pela própria imagem,
und dann wiederum, sah er ein Wahnbild.
E então, novamente, via uma alucinação.

Sogar die größten Stars
Até mesmo os maiores astros
mögen sich nicht im Spiegelglas'.
Não gostam de si mesmos, no cristal do espelho.

Er schuf die Person, die er sein wollte,
Ele criou a pessoa que queria ser,
und wechselte in einer neunen Persönlichkeit.
e mudou-se em uma nova personalidade.

Sogar die größten Stars
Até mesmo os maiores astros

verändern sich im Spiegelglas'.
Metamorfoseiam-se no cristal do espelho.

Der Kunstler lebt im Spiegel
O artista vive no espelho
mit dem Echo seines Selbst.
com o eco de si.

Sogar die größten Stars
Até mesmo os maiores astros
leben ihr Leben im Spiegelglas'.
Vivem suas vidas no cristal do espelho.

Sogar die größten Stars
Até mesmo os maiores astros
machen sich zurecht im Spiegelglas'.
Adornam-se no cristal do espelho.

Sogar die größten Stars
Até mesmo os maiores astros
leben ihr Leben im Spiegelglas'.
Vivem suas vidas no cristal do espelho.

sábado, 9 de junho de 2012

Azurro



Cerco l'estate tutto l'anno
Desejo o verão o ano todo

e all'improvviso eccola qua.
E de repente, ei-lo aqui.

Lei è partita per le spiagge
Ela partiu para o litoral

e sono solo quassù in città,
E estou sozinho aqui na cidade,

sento fischiare sopra i tetti
Ouço o rumor sobre os telhados

un aeroplano che se ne va.
De um avião que se vai.

Azzurro,

Azul,
il pomeriggio è troppo azzurro

O entardecer é muito azul
e lungo per me.

E longo para mim.
Mi accorgo

Eu noto,
di non avere più risorse,
Não possuir nenhum alento

senza di te,
Sem você,

e allora
E então,

io quasi quasi prendo il treno
Eu quase quase pego o trem

e vengo, vengo da te,
E venho, venho a ti,

ma il treno dei desideri
Mas o trem dos desejos

nei miei pensieri all'incontrario va.
Nos meus pensamentos ao contrário vai.

Sembra quand'ero all'oratorio,
Parece quando eu estava no oratório,

con tanto sole, tanti anni fa.
Tão ensolarado, tantos anos fazem.

Quelle domeniche da solo
Aqueles domingos solitários

in un cortile, a passeggiar...
Em um pátio, a passear...

ora mi annoio più di allora,
Agora me entedio mais que antes,

neanche un prete per chiacchierar...
Nem mesmo um padre para conversar...

Azzurro,

Azul,
il pomeriggio è troppo azzurro

O entardecer é muito azul
e lungo per me.

E longo para mim.
Mi accorgo

Eu noto,
di non avere più risorse,
Não possuir nenhum alento

senza di te,
Sem você,

e allora
E então,

io quasi quasi prendo il treno
Eu quase quase pego o trem

e vengo, vengo da te,
E venho, venho a ti,

ma il treno dei desideri
Mas o trem dos desejos

nei miei pensieri all'incontrario va.
Nos meus pensamentos ao contrário vai.
Cerco un pò d'Africa in giardino,
Procuro um pouco da África no jardim,

tra l'oleandro e il baobab,
Entre o Oleandro e a Baobá,

come facevo da bambino,
Como fazia quando criança,

ma qui c'è gente, non si può più,
Mas aqui tem pessoas, não posso mais,

stanno innaffiando le tue rose,
Estão regando as tuas rosas,

non c'è il leone, chissà dov'è...
Não tem o (dente de) Leão, onde estará...
 

Azzurro,
Azul,
il pomeriggio è troppo azzurro

O entardecer é muito azul
e lungo per me.

E longo para mim.
Mi accorgo

Eu noto,
di non avere più risorse,
Não possuir nenhum alento

senza di te,
Sem você,

e allora
E então,

io quasi quasi prendo il treno
Eu quase quase pego o trem

e vengo, vengo da te,
E venho, venho a ti,

ma il treno dei desideri
Mas o trem dos desejos

nei miei pensieri all'incontrario va.
Nos meus pensamentos ao contrário vai.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Nossignore



Io sono il contadino
Eu sou o camponês
nel tuo alto medio evo
Na sua alta idade medieval
una vita miserabile
Uma vida miserável
io mi spezzo e poi mi piego
Eu me quebro então e me curvo
ma la Rivoluzione
Mas a revolução
mi ha dato la terra
Me deu a terra
un acquedotto ed un trattore
Um aqueduto e um trator
un'educazione per i miei figli
Uma educação para os meus filhos
un ospedale, una stazione.
Um hospital, um estação.

Ha lanciato una bonifica
Começou-se uma revitalização
se aspettavo il mio signore
Se eu esperasse os meus senhores,
starei ancora in una bettola
Estaria ainda em uma cabana,
a scacciare le zanzare.
A caçar mosquitos.

Io non ho signore
Eu não tenho Senhor

Io ho una Nazione
Eu tenho uma Nação
Io non ho padrone
Eu não tenho Mestre 

Io ho una Nazione
Eu tenho uma Nação

Io sono il monaco
Eu sou o monge,
io predico e confesso
Eu prego e confesso,
ho un ruolo chiave
Tenho um molho de chaves,
che rallenta ogni forma di progresso.
Que retarda qualquer forma de progresso.

La Rivoluzione mi ha tolto tutto

A revolução me tomou tudo,
ma solo in apparenza
Mas somente em aparência,
sarò sempre un ospite gradito
Serei sempre um hóspede apreciado
dove resiste l'ignoranza
Onde resiste a ignorância.

io consolo le mie anime

Eu consolo as minhas almas
e leggo il mio breviario
E leio o meu breviário
e pur di sopravvivere
E para sobreviver
faccio entrare lo straniero!
Faço entrar o estrangeiro!

Io non ho signore,

io ho una Nazione.
Io non ho padrone
io ho una Nazione.

Io sono il guerriero
Eu sou o guerreiro
sono quello sul cavallo
Sou aquele sobre o cavalo
io impongo il volere del mio padrone
Eu imponho a vontade dos meus mestres
in un costume di metallo
Em uma roupa de metal
sono nato con un titolo
Nasci com um título
e per questo coi miei pari
E por isso com meus companheiros
siamo spietati con i deboli
Somos arrogantes com os fracos
e servili coi signori.
E servis com os senhores

La Rivoluzione ci ha sorpeso
A revolução nos surpreendeu.
ci ha ridotti ed appiedati
Nos reduziu e nos desmontou
ci controlla con l'esercito
Nos controla com o exército
di giovani soldati.
De jovens soldados.

Io non ho signore,
io ho una Nazione.
Io non ho padrone
io ho una Nazione...

domingo, 22 de abril de 2012

Cá mortos jazemos



Here dead we lie
Cá mortos jazemos,
Because we did not choose
Porque não escolhemos,
To live and shame the land
Viver e desonrar a terra
From which we sprung.
Da qual somos rebentos.

Life, to be sure,
A vida, com efeito,
Is nothing much to lose,
Não é algo valioso a se perder
But young men think it is,
Mas para os homens jovens, ela é.
And we were young.
E nós eramos jovens.
 

A. E. Housman

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Agouros e Santiago e cerra Espanha

— Dizes bem, Sancho — acudiu D. Quixote; — mas hás-de advertir que nem todos os tempos são os mesmos, nem correm de igual forma; e isto a que o vulgo costuma chamar agouros, que não se fundam em razão natural alguma, hão-de ser considerados e julgados bons sucessos por quem é discreto. Levanta-se um destes agoureiros pela manhã, encontra-se com um frade da ordem do bem-aventurado S. Francisco, e, como se tivesse encontrado um grifo, vira as costas e volta para sua casa. Derrama-se ao outro Mendoza o sal em cima da mesa[1], e derrama-se-lhe a ele a melancolia no coração, como se fosse obrigada a natureza a dar sinal das porvindouras desgraças, com coisas de tão pouco momento como as referidas. O discreto e cristão não deve andar em pontinhos com o que o céu quer fazer. Chega Cipião[2] à África, tropeça ao saltar em terra, e têm-no por mau agouro os seus soldados; mas ele, abraçando-se com o chão: “Não me poderás fugir, África, porque te agarrei com os meus braços”. De forma que, Sancho, o ter encontrado estas imagens foi para mim felicíssimo acontecimento.

— Assim creio — respondeu Sancho — e quereria que Vossa Mercê me explicasse, por que é que dizem os espanhóis, quando vão dar alguma batalha, invocando aquele S. Tiago Matamouros: “Santiago e cerra Espanha”?[3] Está por acaso a Espanha aberta, e de modo tal, que seja mister cerrá-la? ou que cerimônia é esta?

— És simplório, Sancho — respondeu D. Quixote — e olha que este grande cavaleiro de cruz vermelha deu-o Deus à Espanha por padroeiro e amparo seu, especialmente nos rigorosos transes que os espanhóis têm tido com os mouros, e assim o invocam e chamam, como a seu defensor, em todas as batalhas que acometem, e muitas vezes o viram nelas claramente derribando, atropelando, destruindo e matando os esquadrões agarenos; e desta verdade te poderia dar muitos exemplos, que se contam nas verdadeiras histórias espanholas.

1 - Era superstição corrente crer no malefício do sal derramado.

2 - Cipião, o Africano.

3 - Velho grito de guerra dos espanhóis, como já foi dito, nascido na Batalha de Clavijo, onde se crê que apareceu São Tiago Apóstolo.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo LVIII.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Liberdade

— A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que aos homens deram os céus: não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens. Digo isto, Sancho, porque bem viste os regalos e a abundância que tivemos neste castelo, que deixamos: pois no meio daqueles banquetes saborosos, e daquelas bebidas nevadas, parecia-me que estava metido entre as estreitezas da fome; porque os não gozava com a liberdade com que os gozaria, se fossem meus: que as obrigações das recompensas, dos benefícios e mercês recebidas, são ligaduras que não deixam campear o ânimo livre. Venturoso aquele a quem o céu deu um pedaço de pão, sem o obrigar a agradecê-lo a outrem que não seja o mesmo céu!

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo LVIII.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

O desengano de Altisidora

Sopeia um pouco essas rédeas,
e escuta, mau cavaleiro;
não fatigues as ilhargas
desse teu nobre sendeiro.

Refalsado, tu não foges
de alguma fera serpente,
foges de uma cordeirinha
tenra, cândida, inocente.

Tu escarneceste, ó monstro,
a donzela menos feia,
que viu Diana em seus montes,
e em seus bosques Citereia.

Ingrato Enéias e feroz Teseu,
Barrabás te acompanhe, meu sandeu!

Tu levas, que roubo ímpio!
nas tuas garras grifanhas,
de uma terna namorada
as humílimas entranhas.

Levas três lenços, e as ligas
de umas pernas torneadas,
que são como o puro mármore,
lisas, duras, jaspeadas.

Levas também mil suspiros,
cujo ardor talvez pudesse
abrasar outras mil Tróias,
se outras mil Tróias houvesse.

Ingrato Enéias e feroz Teseu,
Barrabás te acompanhe, meu sandeu!

Que do teu Sancho as entranhas
sejam, para teu tormento,
tão duras, que Dulcinéia
não saia do encantamento.

Que a triste leve o castigo
da tua culpa tamanha,
que justos por pecadores
pagam sempre cá na Espanha.

Que as mais finas aventuras
para ti sejam tristezas,
sonhos os teus passatempos,
olvidos tuas firmezas!

Ingrato Enéias e feroz Teseu,
Barrabás te acompanhe, meu sandeu!

Que sejas tido por falso
de Sevilha a Finisterra,
desde Loja até Granada,
e de Londres a Inglaterra.

Se tu jogares a bisca,
os centos, ou outro jogo,
que os reis, os ases e os setes
fujam de ti logo e logo.

Quando cortares os calos,
que haja sangue e cicatrizes,
quando arrancares os dentes,
que te fiquem as raízes.

Ingrato Enéias e feroz Teseu,
Barrabás te acompanhe, meu sandeu!


CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo LVII.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Antônio

Sei, Olala*, que me adoras,
sem nunca mo teres dito,
nem co’os olhos, línguas mudas,
que entendem os amorios.

Sei-o sim, porque és discreta;
por isso em tal me confirmo;
todo o amor alcança paga,
salvo se é desconhecido.

Verdade é que tenho, Olala,
em ti descoberto indícios
de teres a alma de bronze,
e o peito de gelo frio.

Mas, através das repulsas
e honestíssimos desvios,
talvez se enxergue da esp’rança
um vislumbre fugitivo.

O meu amor se abalança
a esperar, sem ter podido
nem minguar por enjeitado,
nem crescer por escolhido.

Se amores têm cortesia,
da que tu mostras colijo
que o fim das minhas esp’ranças
há-de ser qual imagino.

E se o bem servir consegue
tornar um peito benigno,
já tenho em que funde a crença
de obter os bens a que aspiro;

porque, se nisso reparas,
às vezes me terás visto
vestido à segunda-feira
com as galas do domingo.

As louçainhas e amores
seguem o mesmo caminho;
e eu sempre quis aos teus olhos
apresentar-me polido.

Por teu respeito não bailo;
as músicas não te cito,
que a desoras, e acordando
os galos, terás ouvido.

Não te encareço os louvores
com que os teus dotes sublimo,
que, se bem que verdadeiros,
me fazem de outras malquisto.

Teresa do Barrocal
já, louvando-te eu, me há dito:
— Há quem pense adorar anjos,
estando a adorar bugiosa;

milagres dos arrebiques
mais dos cabelos postiços,
hipócritas formosuras,
que enganam até Cupido.

Desmenti-a; ela enfadou-se;
pôs-se por ela seu primo;
desafiou-me, e bem sabes
qual saiu do desafio.

Nem por demais te cortejo,
nem para mal te cobiço:
a melhor fim se endereçam
minhas atenções contigo.

Na Igreja há prisões de seda
para os casais bem unidos;
mete o pescoço na canga,
que eu sigo o mesmo caminho.

Quando não, desde aqui juro,
pelo Santo mais bendito,
não sairei destas serras
senão para capuchinho.

*Eulália


CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo I, Capítulo XI.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Discurso sobre a Idade Dourada


— Ditosa idade e afortunados séculos aqueles, a que os antigos puseram o nome de dourados, não porque nesses tempos o ouro (que nesta idade de ferro tanto se estima!) se alcançasse sem fadiga alguma, mas sim porque então se ignoravam as palavras teu e meu! Tudo era comum naquela santa idade; a ninguém era necessário, para alcançar o seu ordinário sustento, mais trabalho que levantar a mão e apanhá-lo das robustas azinheiras, que liberalmente estavam oferecendo o seu doce e sazoado fruto. As claras nascentes e correntes rios ofereciam a todos, com magnífica abundância, as saborosas e transparentes águas. Nas abertas das penhas, e no côncavo dos troncos formavam as suas repúblicas as solícitas e discretas abelhas, oferecendo a qualquer, sem interesse algum, a abundosa colheita do seu dulcíssimo trabalho. Os valentes sobreiros despegavam de si, sem mais artifícios que a sua natural cortesia, as suas amplas e leves cortiças, com que se começaram a cobrir casas sobre rústicas estacas, sustentadas só para reparo contra as inclemências do céu. Tudo então era paz, tudo amizade, tudo concórdia. Ainda se não tinha atrevido a pesada relha do curvo arado a abrir e visitar as entranhas piedosas da nossa primeira mãe, que ela, sem a obrigarem, oferecia por todas as partes do seu fértil e espaçoso seio o que pudesse fartar, sustentar, e deleitar, aos filhos que então a possuíam. Então, sim, que andavam as símplices e formosas pastorinhas de vale em vale, e de outeiro em outeiro, com singelas tranç\as ou em cabelo, sem mais vestidos que os necessários para encobrirem honestamente o que a honestidade quer, e quis sempre, que se encubra. Não eram seus adornos, como os que ao presente se usam, exagerados com a púrpura de Tiro, e com a por tantos modos martirizada seda; eram folhagens de verde bardana e hera entretecidas; com o que talvez andavam tão garridas e enfeitadas como agora andam as nossas damas de corte com as raras e peregrinas invenções que a indústria ociosa lhes tem ensinado. Então expressavam-se os conceitos amorosos da alma simples, tão singelamente como ela os dava, sem se procurarem artificiosos rodeios de fraseado para os encarecer. Com a verdade e lhaneza não se tinha ainda misturado a fraude, o engano, e a malícia. A justiça continha-se nos seus limites próprios, sem que ousassem turbá-la nem ofendê-la o favor e interesse, que tanto hoje a enxovalham, perturbam e perseguem. Ainda se não tinha metido em cabeça a juiz o julgar por arbítrio, porque ainda não havia nem julgadores, nem pessoas para serem julgadas. As donzelas e a honestidade andavam, como já disse, por toda a parte desguardadas e seguras, sem medo de que a alheia desenvoltura e atrevimentos lascivos as desacatassem; se se perdiam era por seu gosto e própria vontade. E agora, nestes nossos detestáveis séculos, nenhuma está segura, ainda que a encerre e esconda outro labirinto de Creta, porque lá mesmo, pelas fendas ou pelo ar, com o zelo do maldito cuidado lhes entra o amoroso contágio, e as faz dar com todo o seu recato à costa. Para segurança delas, com o andar dos tempos, e crescendo mais a malícia, se instituiu a ordem dos cavaleiros andantes, defensora das donzelas, amparadora das viúvas, e socorredora dos órfãos e necessitados.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo I, Capítulo XI.

domingo, 15 de abril de 2012

Dona Rodríguez



— Assim creio que da gentil e agradável presença de Vossa Mercê não se podia esperar senão resposta cristã. É pois o caso que, ainda que Vossa Mercê me vê sentada nesta cadeira, e aqui no meio do reino de Aragão, e com trajos de dona aniquilada e escarnecida, sou natural das Astúrias de Oviedo e pela minha linhagem passam muitas das melhores daquela província; mas a minha triste sorte e o descuido de meus pais, que empobreceram antes de tempo, sem saber como nem como não, trouxeram-me à corte de Madrid, onde, por bem da paz e por escusar maiores desventuras me arranjaram o ser donzela de lavor de uma senhora principal; e quero que Vossa Mercê saiba que em costura de roupa branca ninguém me leva a melhor. Meus pais deixaram-me servir e voltaram para a sua terra, e dali a poucos anos foram decerto para o céu, porque eram bons cristãos católicos. Fiquei órfã e atida ao mísero salário e às angustiadas mercês que a tais criadas se costuma dar em palácio; e, a este tempo, sem que eu desse ocasião a isso, enamorou-se de mim um escudeiro da casa, homem já de idade, barbudo, apessoado* e, sobretudo, tão fidalgo como El-Rei, porque era montanhês. Não tratamos tão secretamente os nossos amores, que não chegassem ao conhecimento de minha ama, que, por escusar dizes tu, direi eu, nos casou em paz e à face da Santa Madre Igreja Católica Romana, e desse matrimônio nasceu uma filha, para acabar com a minha ventura, se alguma tinha, não porque eu morresse de parto, que o tive direito, mas porque, dali a pouco, morreu meu esposo de uma aflição que, se eu tivesse agora ensejo para lha contar, sei que Vossa Mercê se admiraria.

*Alarde de nobreza nos montanheses por não terem misturado seu sangue com os semitas.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XLVIII.

sábado, 14 de abril de 2012

Aforismo 33

Defina para si próprio, desde o início uma marca definida ou um estilo de conduta que você mantenha quando está sozinho e também quando na sociedade dos homens. Esteja em silêncio na maior parte do tempo, ou, se tiver de falar, fale apenas aquilo que é necessário e em poucas palavras. Fale, mas raramente, se a ocasião assim o exige, mas não fale de coisas ordinárias - de gladiadores, corridas de cavalo, ou atletas, ou de carnes ou bebidas - estes são tópicos que surgem em todos os lugares, mas acima de tudo, não fale dos homens seja em acusação ou elogios ou comparações. Se puder, conduza a conversação que ocorre na sua presença para algum assunto apropriado; e se você, por acaso se encontrar no meio de estranhos, permaneça em silêncio. Não ria muito, nem frente a muitas coisas, nem sem algum tipo de controle.

Recuse-se em fazer juramentos, sempre se possível, mas se não puder evitar, na medida em que as circunstâncias o permitirem. 

Recuse o entretenimento de estranhos e do vulgar. Mas se surgir a ocasião de aceitá-los, então tente intensamente evitar recair no estado do vulgar. Saiba que, se o seu camarada possui uma nódoa sobre ele, aquele que se associa com ele necessariamente compartilha da nódoa com ele, mesmo que de início esteja limpo.
 
Para o seu corpo tome apenas aquilo que as suas necessidades básicas exijam, tais como comida, bebida, vestuário, casa, escravos, mas corte fora tudo o que conduza ao luxo e ao exibicionismo.

Quanto ao prazer com as mulheres, evite-o ao máximo das suas capacidades antes do casamento: e se você se abandonar à paixão, permita que ela se expresse de maneira correta. Mas não seja agressivo ou censurador contra aqueles que se envolvem (na paixão licenciosa), e não esteja sempre gabando a sua castidade. 

Se alguém lhe chama a atenção disso e fala mal de você, não se defenda contra o que ele lhe acusa, mas responda, "Ele não conhece as minhas outras faltas, ou então ele não teria mencionado apenas estas".

Não é necessário na maioria das vezes ir até os jogos (entretenimento); mas se você em alguma ocasião deve ir, mostre que a sua primeira preocupação é para com você mesmo; ou seja, deseje que apenas venha a acontecer aquilo que acontece, e que vença aquele que deve vencer, porque assim você não irá sofrer qualquer tipo de angústia. Mas controle qualquer impulso para o aplauso, ou zombaria ou ao entusiasmo prolongado. E quando você for embora, não fale muito sobre o que ocorreu ali, exceto naquilo que permite o seu aperfeiçoamento (no controle dessas qualidades). Porque falar muito sobre isto (e qualquer assunto) implica que o espetáculo excitou a sua imaginação. 

Não vá a ouvir palestras com atitude superficial ou casual; mas se for, mantenha a sua seriedade e dignidade e não se torne um indivíduo ofensivo aos demais. Quando você vai encontrar-se com alguém, e particularmente com alguém de eminência reconhecida, coloque frente à sua mente o pensamento, "O que é que Sócrates e Zenão teriam feito?" e você não terá dificuldade em tirar o proveito apropriado da ocasião.
 
Quando você vai visitar algum grande homem, prepare a sua mente ao pensar que talvez você não venha a encontrá-lo, e se o encontrar, que ele talvez não queira te receber, que as portas lhe sejam fechadas violentamente contra o seu rosto, e que ele não lhe dará nenhuma atenção. E se apesar de tudo, você ainda achar que deve ir até ele, vá e suporte o que vier a acontecer, e nunca se diga internamente "Não valeu a pena", porque isso demonstra uma mente vulgar e uma pessoa afetada pelas coisas externas.

Na sua conversação evite menções freqüentes e desproporcionadas das suas próprias atividades e aventuras; porque as outras pessoas não tem o mesmo prazer em ouvir as coisas que lhe aconteceram na mesma medida que você tem ao contá-las. 

Evite causar o riso dos homens, este é um vício que rapidamente recai na vulgaridade e serve muito bem para diminuir o respeito que os seus vizinhos lhe devotam.

É também perigoso fazer uso de linguagem obscena; quando algo desse tipo acontecer, chame a atenção do ofensor, se a ocasião o permitir e se não, faça ficar claro para ele, pelo seu silêncio, ou então ao ruborizar-se ou mesmo um franzir de testa, que você está aborrecido pelas suas palavras.


Epíteto, Manual (Enchridion), Aforismo 33

Da resposta de Dom Quixote a Altisidora


Tiram as almas dos eixos
as grandes forças do amor,
são os cuidados do ócio
seu instrumento melhor.

As donzelas na costura,
e em ’star sempre atarefadas,
têm antídoto ao veneno
das ânsias enamoradas.

As donzelas recolhidas,
e que desejam casar,
têm na honestidade o dote,
e a voz que as há-de louvar.

Os cavaleiros andantes
e os que vão da corte às festas,
têm com as soltas requebros,
mas só casam coas honestas.

Fútil amor de levante
podem-no hóspedes sentir,
chega rápido ao poente,
porque acaba co’o partir.

Amor que nasce depressa,
hoje vem, vai-se amanhã,
nas almas não deixa impressa
a sua imagem louçã.

Pintura sobre pintura
não é como em tábua rasa;
onde há primeira beleza
a segunda não faz vaza.

Dulcinéia del Toboso
eu tenho n’alma pintada
com tal viveza, que nunca
poderá ser apagada.

A firmeza nos amantes
é dote mui de louvar,
amor opera milagres
por quem assim sabe amar.


CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XLVI.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Altisidora

Ó tu, que estás no teu leito
com lençóis de holanda fina,
dormindo bem regalado,
sem sentires a espertina,

cavaleiro o mais valente
que na Mancha se há gerado,
mais honesto e abençoado
que o ouro da Arábia ardente:

ouve uma triste donzela,
bem-nascida e mal lograda,
que na luz desses teus olhos
a alma sente abrasada.

Achas desditas alheias,
quando buscas aventuras;
e de amor cruéis feridas
tu as dá, mas não as curas.

Dize-me, bravo mancebo,
(que Deus cumpra os teus desejos)
se te criaste na Líbia
ou em montes sertanejos.

Deram-te leite as serpentes?
Foram tuas amas bravias
as aspérrimas florestas
e o horror das serranias?

Mui bem pode Dulcinéia,
donzela sã e gorducha,
gabar-se de ter rendido
um tigre, fera machucha.

Por isso, será famosa
de Jarama até Henares,
de Pisuerga até Arlanza
e do Tejo ao Manzanares.

Eu trocava-me por ela,
e ainda em cima dava a saia
mais vistosa que eu possuo
de áureas franjas na cambraia,

Quisera estar nos teus braços,
ou prestar-te o bom serviço
de te sacudir a caspa,
de te coçar o toutiço.

Muito peço, não sou digna
de mercê tão levantada;
dá-me os teus pés, isso basta,
nem eu desejo mais nada.

Que prendas eu te daria!
escarpins de prata fina,
umas calças de damasco,
uns calções de bombazina;

muitas pedras preciosas,
finas pér’las orientais,
que, a não terem companheiras,
não contariam iguais!

Não mires dessa Tarpéia
este incêndio que me queima,
Nero manchego, que o fogo
avivas coa tua teima.

Menina sou, virgem tenra,
quinze anos não completei;
tenho catorze e três meses,
juro pela santa lei.

Não sou manca, não sou coxa,
não tenho um só aleijão,
meus cabelos cor de lírios,
’stando em pé, chegam-me ao chão.

A boca tenho aquilina,
tenho a penca abatatada;
os dentes são uns topázios!
vê que beleza afamada!

Sou pequenina, o que importa?
A minha voz, fresca e pura,
confessa que (se me escutas)
tem suavíssima doçura.

Conquistou minha alma ingênua
teu rosto que me enamora;
sou donzela desta casa,
e chamam-me Altisidora.


CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XLIV.

terça-feira, 10 de abril de 2012

A cidade

A meu predileto amigo o Sr. Dr. Betoldi

A cidade ali está com seus enganos,
Seu cortejo de vícios e traições,
Seus vastos templos, seus bazares amplos,
Seus ricos paços, seus bordéis salões.
 

A cidade ali está: sobre seus tetos
Paira dos arsenais o fumo espesso,
Rolam nas ruas da vaidade os coches
E ri-se o crime à sombra do progresso.
 

A cidade ali está: sob os alpendres
Dorme o mendigo ao sol do meio-dia,
Chora a viúva em úmido tugúrio,
Canta na catedral a hipocrisia.
 

A cidade ali está: com ela o erro,
A perfídia, a mentira, a desventura...
Como é suave o aroma das florestas!
Como é doce das serras a frescura!
 

A cidade ali está: cada passante
Que se envolve das turbas no bulício
Tem a maldade sobre a fronte escrita,
Tem na língua o veneno e nalma o vício.

Não, não é na cidade que se formam
Os fortes corações, as crenças grandes,
Como também nos charcos das planícies
Não é que gera-se o condor dos Andes!

Não, não é na cidade que as virtudes,
As vocações eleitas resplandecem,
Flores de ar livre, à sombra das muralhas
Pendem cedo a cabeça e amarelecem.
 

Quanta cena infernal sob essas telhas!
Quanto infantil vagido de agonia!
Quanto adultério! Quanto escuro incesto!

Quanta infâmia escondida à luz do dia!
 

Quanta atroz injustiça e quantos prantos!
Quanto drama fatal! Quantos pesares!
Quanta fronte celeste profanada!
Quanta virgem vendida aos lupanares!

Quanto talento desbotado e morto!
Quanto gênio atirado a quem mais der!
Quanta afeição cortada! Quanta dúvida!
Num carinho de mãe ou de mulher!

Eis a cidade! Ali a guerra, as trevas,
A lama, a podridão, a iniqüidade;
Aqui o céu azul, as selvas virgens,
O ar, a luz, a vida, a liberdade!
 

Ali medonhos, sórdidos alcouces,
Antros de perdição, covis escuros,
Onde ao clarão de baços candeeiros
Passam da noite os lêmures impuros;
 

E abalroam-se as múmias coroadas,
Corpos de lepra e de infecção cobertos,
Em cujos membros mordem-se raivosos
Os vermes pelas sedas encobertos!

Aqui verdes campinas, altos montes,
Regatos de cristal, matas viçosas,
Borboletas azuis, loiras abelhas,
Hinos de amor, canções melodiosas.
 

Ali a honra e o mérito esquecidos,
Mortas as crenças, mortos os afetos,
Os lares sem legenda, a musa exposta
Aos dentes vis de perros objetos!

Presa a virtude ao cofre dos banqueiros,
A lei de Deus entregue aos histriões!
Em cada rosto o selo do egoísmo,
Em cada peito um mundo de traições!

Depois o jogo, a embriaguez, o roubo,
A febre nos ladrilhos do prostíbulo,
O hospital, a prisão... Por desenredo
A imagem pavorosa do patíbulo!

Eis a cidade!... Aqui a paz constante,
Serena a consciência, alegre a vida,
Formoso o dia, a noite sem remorsos,
Pródiga a terra, nossa mãe querida!
 

Salve, florestas virgens! Rudes serras!
Templos da imorredoura liberdade!
Salve! Três vezes salve! Em teus asilos
Sinto-me grande, vejo a divindade!


Fagundes Varella

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Dos conselhos de Dom Quixote a Sancho acerca do governo da Ilha

Primeiramente, filho, hás-de temer a Deus, porque no temor de Deus está a sabedoria, e, sendo sábio, em nada poderás errar. Em segundo lugar, põe os olhos em quem és, procurando conhecer-te a ti mesmo, que é o conhecimento mais difícil que se pode imaginar. De conhecer-te resultará o não inchares como a rã, que se quis igualar ao boi: que, se isto fizeres, virá a ser feia base da roda da tua loucura a consideração de teres guardado porcos na tua terra.
 
 — Isso é verdade — respondeu Sancho — mas foi quando era pequeno; depois de homenzito, o que eu guardei foram gansos; mas isto parece-me que não faz nada ao caso, que nem todos os que governam vêm de famílias reais.

— É verdade — replicou D. Quixote — e por isso, os que não são de origem nobre devem acompanhar a gravidade do cargo que exercitam com uma branda suavidade, que, ligada com a prudência, os livre da murmuração maliciosa, a que nenhum estado escapa. Faze gala da humildade da tua linhagem, Sancho, e não tenhas desprezo em dizer que és filho de lavradores, porque, vendo que te não corres por isso, ninguém to poderá lançar em rosto; ufana-te mais em seres humilde virtuoso, que pecador soberbo. Inumeráveis são os que, nascidos de baixa estirpe, subiram à suma dignidade pontifícia e imperatória, e podia dar-te tantos exemplos que te fatigaria. Repara, Sancho, que, se te ufanares de praticar atos virtuosos, não há motivo para ter inveja aos príncipes e senhores, porque o sangue se herda e a virtude adquire-se, e a virtude por si só vale o que não vale o sangue. Sendo isto assim, se acaso te for ver, quando estiveres na tua ilha, algum dos teus parentes, não o afrontes nem o desdenhes, mas, pelo contrário, acolhe-o e agasalha-o, e festeja-o, que satisfarás com isso o céu, que gosta que ninguém se despreze pelo que ele fez, e corresponderás ao que deves à bem concertada natureza. Se levares tua mulher contigo (porque não é bem que os que governam por muito tempo estejam sem as suas mulheres), ensina-a, doutrina-a e desbasta-lhe a natural rudeza, porque tudo o que ganha um governador discreto, perde-o muitas vezes uma mulher rústica e tola. Se, por acaso, enviuvares, e com o cargo melhorares de consorte, não a tomes tal que te sirva de anzol e de isca, porque em verdade te digo que, de tudo o que a mulher do juiz receber há-de dar conta o marido na residência universal, com que pagará pelo quádruplo na morte o que ilegitimamente recebeu em vida. Nunca interpretes arbitrariamente a lei, como costumam fazer os ignorantes que têm presunção de agudos. Achem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, mas não mais justiça do que as queixas dos ricos. Quando se puder atender à eqüidade, não carregues com todo o rigor da lei no delinqüente, que não é melhor a fama do juiz rigoroso que do compassivo. Se dobrares a vara da justiça, que não seja ao menos com o peso das dádivas, mas sim com o da misericórdia. Quando te suceder julgar algum pleito de inimigo teu, esquece-te da injúria e lembra-te da verdade do caso. Não te cegue paixão própria em causa alheia, que os erros que cometeres, a maior parte das vezes serão sem remédio, e, se o tiverem, será à custa do teu crédito e até da tua fazenda. Se alguma mulher formosa te vier pedir justiça, desvia os olhos das suas lágrimas e os ouvidos dos seus soluços, e considera com pausa a substância do que pede, se não queres que se afogue a tua razão no seu pranto e a tua bondade nos seus suspiros. A quem hás-de castigar com obras, não trates mal com palavras, pois bem basta ao desditoso a pena do suplício, sem o acrescentamento das injúrias. Ao culpado que cair debaixo da tua jurisdição, considera-o como um mísero, sujeito às condições da nossa depravada natureza, e em tudo quanto estiver da tua parte, sem agravar a justiça, mostra-te piedoso e clemente, porque ainda que são iguais todos os atributos de Deus, mais resplandece e triunfa aos nossos olhos o da misericórdia que o da justiça. Se estes preceitos e estas regras seguires, Sancho, serão longos os teus dias, eterna a tua fama, grandes os teus prêmios, indizível a tua felicidade; casarás teus filhos como quiseres, terão títulos eles e os teus netos, viverás em paz e no beneplácito das gentes, e aos últimos passos da vida te alcançará a morte em velhice madura e suave, e fechar-te-ão os olhos as meigas e delicadas mãos de teus trinetos. O que até aqui te disse são documentos que devem adornar tua alma: escuta agora os que hão-de servir para adorno do corpo. 
 
CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XLII.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Alexandre



Solo montagne, poi valli e pianure che ad ovest si gettano in mare
Somente montanhas, então vales e campinas, que a oeste lançam-se no mar
Alle mie spalle, dove nasce il sole, terra da conquistare
Às minhas costas, onde o sol nasce, terras a conquistar
Troppo coraggio, il troppo sognare hanno dato ali al nostro cuore
Muita coragem, e muito sonhar, outorgaram asas ao nosso coração
E un uomo dotato di un cuore alato può solo alzarsi e volare
E um homem dotado de um coração alado, somente pode alçar-se ao voo,
Farò che il sogno che brucia il mio cuore dilaghi come fa il mare
Farei com que o sonho que queima em meu coração transborde como o mar
Quando si gonfia di vento e tempesta e nulla lo può fermare
Quando insufla-se de ventos e tempestades e nada pode detê-lo
Le mie falangi saranno quell'onda che nulla potrà mai arrestare
As minhas falanges serão aquela onda que nada poderá parar
E il mio nome, Alessandro, sarà vessillo di forza e gloria in eterno!
E o meu nome Alexandre, será penhor de força e gloria pela eternidade!

Fratelli macedoni è il tempo 
Irmãos Macedônios é o tempo
Di essere uomini adesso!
De sermos homens agora!
La storia ricorda solo il coraggio, 
A história recorda somente a coragem,
L'onore e le epiche gesta!
A honra e as gestas épicas!
Il resto non conta!
O resto não conta!

Prima la Tracia, poi la Cappadocia, l'Armenia, fino in Babilonia
Primeiro a Trácia, depois a Capadócia, a Armênia, até a Babilônia,
Lungo sentieri infestati da belve, guerrieri e a guardia la morte
Longos caminhos infestados de bestas, guerreiros e a sentinela morte,
Su quelle terre farò germogliare col sangue città come il sole
Sob aquelas terras farei germinar com sangue cidades como o sol,
Che splenderanno a fulgido esempio di cosa può fare il coraggio!
Que resplandecerão como um fulgido exemplo das coisas que a coragem pode fazer!

Fratelli Macedoni è il tempo 
Irmãos Macedônios é o tempo
Di essere uomini adesso!
De sermos homens agora!
La storia ricorda solo il coraggio, 
A história recorda somente a coragem,
L'onore e le epiche gesta!
A honra e as gestas épicas!
Il resto non conta!
O resto não conta!

Giunto sull'Indo, al confine del sogno, io provo soltanto sgomento
Junto ao Indo, nos  confins do sonho, eu experimento somente desânimo,
Non c'è mai fine a questo mondo e fermarmi non posso farlo,
Este mundo não tem fim, e parar eu não posso,
Ma guardo i guerrieri, i miei fratelli provati da troppe battaglie
Mas o observo os guerreiros, os meus irmãos provados em muitas batalhas
Dovere rinunciare, tornare indietro, lo so, vorrà dire morire!
Dever renunciar, voltar atrás, eu sei, significa morrer!

Fratelli macedoni è il tempo 
Irmãos Macedônios é o tempo
di essere uomini adesso!
de sermos homens agora!
La storia ricorda solo il coraggio
A história recorda somente a coragem
L'onore e le epiche gesta!
A honra e as gestas épicas!
Il resto non conta!
O resto não conta!

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Princípio da gesta Quixotesca


Apenas tinha o rubicundo Apolo estendido pela face da ampla e espaçosa terra as doiradas melanias dos seus formosos cabelos, e apenas os pequenos e pintados passarinhos, com as suas farpadas línguas, tinham saudado, com doce e melíflua harmonia, a vinda da rosada aurora, que, deixando a branda cama do zeloso marido, pelas portas e varandas do horizonte manchego aos mortais se mostrava; quando o famoso cavaleiro D. Quixote de la Mancha, deixando as ociosas penas, se montou no seu famoso cavalo Rocinante e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo de Montiel (e era verdade, que por esse mesmo campo é que ele ia). Ditosa idade e século ditoso, aquele em que hão-de sair à luz as minhas famigeradas façanhas dignas de gravar-se em bronze, esculpir-se em mármores, e pintar-se em painéis para lembrança de todas as idades!

Começo alternativo da estória de Dom Quixote composto por ele mesmo, Capítulo II, Tomo I.

terça-feira, 3 de abril de 2012

A Dom Pedro II


Tu és a estrela mais fulgente e bela
Que o solo aclara da Colúmbia terra,
A urna santa que de um povo inteiro
Arcanos fundos no sacrário encerra!
 
Tu és nos ermos a coluna ardente
Que os passos guia de uma tribo errante,
E ao longe mostras através das névoas
A plaga santa que sorriu distante!...
 
Tu és o gênio benfazejo e grato
Poupando as vidas no calor das fráguas,
E, à voz das turbas, do rochedo em chamas
Desprende um jorro de benditas águas!
 
Tu és o nauta que através dos mares
O lenho imenso do porvir conduz,
E ao porto chega sossegado e calmo
De um astro santo acompanhando a luz!
 
Oh! não consintas que teu povo siga
Louco, sem rumo, desonroso trilho!
Se és grande, ingente, se dominas tudo,
Também das terras do Brasil és filho!
 
Abre-lhe os olhos, o caminho ensina
Aonde a glória em seu altar sorri
Dize que vive, e viverá tranqüilo,
Dize que morra, morrerá por ti!

Fagundes Varella

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Childe-Harold

(Sobre uma página de Byron)
 

Não te rias assim, oh! não te rias,
Basta de sonhos, de ilusões fatais!
Minh’alma é nua, e do porvir às luzes
Meus roxos lábios sorrirão jamais!
 

Que pesar me consome? ah! não procures
Erguer a lousa de um pesar profundo,
Nem apalpares a matéria lívida,
E a lama impura que pernoita ao fundo!
 

Não são as flores da ambição pisadas,
Não é a estrela de um porvir perdida...
Que esta cabeça coroou de sombras
E a tumba inclina ao despontar da vida!
 

É este enojo perenal, contínuo,
Que em toda a parte me acompanha os passos,
E ao dia incende-me as artérias quentes,
Me aperta à noite nos mirrados braços!
 

São estas larvas de martírio e dores 
Sócias constantes do judeu maldito!
Em cuja testa, dos tufões crestada,
Labéu de fogo cintilava escrito!
 

Quem de si mesmo desterrar-se pode?
Quem pode a idéia aniquilar que o mata?
Quem pode altivo esmigalhar o espelho
Que a torva imagem de Satã retrata?
 

Quantos encontram inefáveis gozos
Nesses prazeres, para mim tormentos!
Quantos nos mares onde a morte enxergo
Abrem as velas do baixel aos ventos!
 

O meu destino é vaguear e sempre!
Sempre fugindo funeral lembrança...
Férreo estilete que me rasga os músculos,
Voz dos abismos que me brada: - Avança!
 

Que pesar me consome? ai! não mais tentes,
Espera a lousa de um pesar profundo,
Somente a morte encontrarás nas bordas,
E o inferno inteiro a praguejar no fundo!



Fagundes Varella

domingo, 1 de abril de 2012

Resignação

Sozinho no descampado,
Sozinho sem companheiro,
Sou como o cedro altaneiro
Pela tormenta açoitado.
 

Rugi, tufão desabrido!
Passai, temporais de pó!
Deixai o cedro esquecido,
Deixai o cedro estar só!
 

Em meu orgulho embuçado,
Do tempo zombo da lei...
Oh! venha o raio abrasado,
- Sem me vergar... tombarei!
 

Gigante da soledade,
Tenho na vida um consolo:
Se enterro as plantas no solo,
Chego a fronte à imensidade!
 

Nada a meu fado se prende,
Nada enxergo junto a mim;
Só o deserto se estende
A meus pés, fiel mastim.
 

À dor o orgulho sagrado
Deus ligou num grande nó...
Quero viver isolado,
Quero viver sempre só!
 

E quando o raio incendido
Roçar-me, então cairei
Em meu orgulho envolvido,
Como em um manto de rei.


Fagundes Varella

sábado, 31 de março de 2012

Da resposta que deu D. Quixote ao seu repreensor

 
Erguido, pois, D. Quixote, tremendo desde os pés até à cabeça, com azougada, pressurosa e turva língua, disse:

— O lugar onde estou, a presença de tão excelsas pessoas e o respeito que sempre tive e tenho ao estado que Vossa Mercê professa, atam-me as mãos ao justíssimo enfado; e assim, tanto pelo que disse, como por saberem todos que as armas dos que vestem sotainas são, como as das mulheres, a língua, entrarei, servindo-me da minha, em igual batalha com Vossa Mercê, de quem se deviam esperar antes bons conselhos do que infames vitupérios. As repreensões santas e bem intencionadas requerem outras circunstâncias e pedem outros assuntos; pelo menos, o repreender-me em público e tão asperamente, excedeu todos os limites da censura cordata; porque às primeiras cabe melhor a brandura do que a aspereza; não me parece bem que, sem ter conhecimento do pecado que se repreende, se chame ao pecador, sem mais nem mais, mentecapto e tonto. Senão, diga-me Vossa Mercê: que tonteria viu em mim, para me condenar e vituperar, e mandar-me que vá para minha casa tomar conta do seu governo, e de minha mulher e de meus filhos, sem saber se tenho filhos e mulher? Então não é mais senão entrar a trouxe-mouxe pelas casas alheias a governar os donos delas, e, tendo-se criado alguns dos que isso fazem na estreiteza dum seminário, sem terem visto mais mundo do que o que pode encerrar-se em vinte ou trinta léguas de comarca, meterem-se de rondão a dar leis à cavalaria e a julgar os cavaleiros andantes? Porventura é assunto vão, ou é tempo desperdiçado o que se gasta em vaguear pelo mundo, não procurando os seus regalos, mas sim as asperezas por onde ascendem os bons à sede da imortalidade? Se me tivessem por tonto os cavaleiros, os magníficos, os generosos, os de alto nascimento, considerá-lo-ia eu afronta irreparável; mas que me tenham por sandeu os estudantes, que nunca pisaram a senda da cavalaria, pouco me importa; cavaleiro sou e cavaleiro hei-de morrer, se aprouver ao Altíssimo: uns seguem o largo campo da ambição soberba, outros o da adulação servil e baixa, outros o da hipocrisia enganosa, e alguns o da verdadeira religião; mas eu, guiado pela minha estrela, sigo a apertada vereda da cavalaria andante, por cujo exercício desprezo a fazenda, mas não a honra. Tenho satisfeito agravos, castigado insolências, vencido gigantes e atropelado vampiros: sou enamorado, só porque é forçoso que o sejam os cavaleiros andantes, e, sendo-o, não pertenço ao número dos viciosos, mas sim ao dos platônicos e continentes. As minhas intenções sempre as dirijo para bons fins, que são fazer bem a todos e mal a ninguém. Se quem isto entende, se quem isto pratica, se quem disto trata, merece ser chamado bobo, digam-no vossas grandezas, duque e duquesa excelentes.
 
CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XXXII.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Arjuna



In piedi sul grande carro da guerra
De pé em seu grande carro de guerra
Arjuna guardava a nord
Arjuna contemplava o norte
Parenti ed amici sul fronte nemico
Parentes e amigos no fronte inimigo
Si stagliano contro il sol
Delineiam-se contra o sol

L'angoscia dipinta sul volto smarrito
A angústia impressa em sua face absorta
Oppure la sua pietà
Contraria a sua piedade
Arjuna il suo arco depose
Arjuna depõe o seu arco
Ma non per viltà
Mas não por vileza

Della famiglia l'ordine sacro
Da família a ordem sagrada
No non si può sovvertir
Não se pode subverter
Più che colpire un fratello
Mais que golpear um irmão
In battaglia di certo è meglio morir
Em batalha, decerto é melhor morrer
 

Distinguer tra caste di genti diverse
Distinguir-se entre castas de pessoas diversas
E' avere rispetto di se
E possuir o respeito de si
La mescolanza e il delitto
A mistura é o delito
Più grande che c'è
Mais grave que há

Kaurava e pandava un'unica gente
Kaurava e Pandava um único clã
Dall'odio costretta a lottar
Pelo ódio é forçado a lutar
L'auriga del carro rivolto ad arjuna
O cocheiro do carro revolto de Arjuna
Lo invita ad ascoltar
Convida-o a escutar

Parole che son come pietre scagliate
Palavras que são como pedras lançadas
Che destano saggi ed eroi
Que despertam sábios e heróis
Risvegliano lo spirito ariano
Reacende o espírito Ariano
Che è dentro di noi
Que existe dentro de nós

Non ci saranno fratelli in battaglia
Não serão irmãos em batalha
Ma corpi che tu colpirai
Mas corpos que tu golpearás
La carne è caduta lo spirito eterno,
A carne é perecível, o espírito eterno,
Chi cade non morirà mai
Quem cai jamais morrerá

Nessuno uccide nessuno in battaglia
Ninguém mata ninguém em batalha
Ma offre il suo dono agli dei
Mas oferece sua doação aos Deuses
E' il dharma della stirpe di sangue
É o Dharma da estirpe do sangue
Degli indoeuropei
Dos indo-europeus

Lanciati quindi in battaglia arjuna
Lança-te assim em batalha Arjuna
E ignora piacere e dolor
E ignore o prazer e a dor
Vittoria e disfatta dimenticata e agisci
Vitória e derrota, esquece-as e age
Soltanto a difender l'onor
Somente a defender a honra

Affrancati dai desideri e dai frutti dell'atto
Liberta-te dos desejos e dos frutos do ato
Che rifiuterai
Que refutarás
Solo per il sacrificio
Apenas pelo sacrifício
Tu lotterai
Tu lutarás

Distacco e disinteresse
Desapego e desinteresse
Illumineranno le tue virtù
Iluminarão as tuas virtudes
Nel tendere forte quell'arco la rabbia
No tensionar forte daquele arco, a raiva
Segnata dalla tua gioventù
Marcada da sua juventude

La scimmia è l' insegna di quella bandiera
A símia é o símbolo daquela bandeira
Che al vento garrisce già
Que ao vento flamula já
E' il drappo che porti nel cuore
É o estandarte que portarás no coração
Per l'eternità
Pela eternidade