quarta-feira, 18 de abril de 2012

O desengano de Altisidora

Sopeia um pouco essas rédeas,
e escuta, mau cavaleiro;
não fatigues as ilhargas
desse teu nobre sendeiro.

Refalsado, tu não foges
de alguma fera serpente,
foges de uma cordeirinha
tenra, cândida, inocente.

Tu escarneceste, ó monstro,
a donzela menos feia,
que viu Diana em seus montes,
e em seus bosques Citereia.

Ingrato Enéias e feroz Teseu,
Barrabás te acompanhe, meu sandeu!

Tu levas, que roubo ímpio!
nas tuas garras grifanhas,
de uma terna namorada
as humílimas entranhas.

Levas três lenços, e as ligas
de umas pernas torneadas,
que são como o puro mármore,
lisas, duras, jaspeadas.

Levas também mil suspiros,
cujo ardor talvez pudesse
abrasar outras mil Tróias,
se outras mil Tróias houvesse.

Ingrato Enéias e feroz Teseu,
Barrabás te acompanhe, meu sandeu!

Que do teu Sancho as entranhas
sejam, para teu tormento,
tão duras, que Dulcinéia
não saia do encantamento.

Que a triste leve o castigo
da tua culpa tamanha,
que justos por pecadores
pagam sempre cá na Espanha.

Que as mais finas aventuras
para ti sejam tristezas,
sonhos os teus passatempos,
olvidos tuas firmezas!

Ingrato Enéias e feroz Teseu,
Barrabás te acompanhe, meu sandeu!

Que sejas tido por falso
de Sevilha a Finisterra,
desde Loja até Granada,
e de Londres a Inglaterra.

Se tu jogares a bisca,
os centos, ou outro jogo,
que os reis, os ases e os setes
fujam de ti logo e logo.

Quando cortares os calos,
que haja sangue e cicatrizes,
quando arrancares os dentes,
que te fiquem as raízes.

Ingrato Enéias e feroz Teseu,
Barrabás te acompanhe, meu sandeu!


CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo LVII.

Nenhum comentário:

Postar um comentário