sexta-feira, 13 de abril de 2012

Altisidora

Ó tu, que estás no teu leito
com lençóis de holanda fina,
dormindo bem regalado,
sem sentires a espertina,

cavaleiro o mais valente
que na Mancha se há gerado,
mais honesto e abençoado
que o ouro da Arábia ardente:

ouve uma triste donzela,
bem-nascida e mal lograda,
que na luz desses teus olhos
a alma sente abrasada.

Achas desditas alheias,
quando buscas aventuras;
e de amor cruéis feridas
tu as dá, mas não as curas.

Dize-me, bravo mancebo,
(que Deus cumpra os teus desejos)
se te criaste na Líbia
ou em montes sertanejos.

Deram-te leite as serpentes?
Foram tuas amas bravias
as aspérrimas florestas
e o horror das serranias?

Mui bem pode Dulcinéia,
donzela sã e gorducha,
gabar-se de ter rendido
um tigre, fera machucha.

Por isso, será famosa
de Jarama até Henares,
de Pisuerga até Arlanza
e do Tejo ao Manzanares.

Eu trocava-me por ela,
e ainda em cima dava a saia
mais vistosa que eu possuo
de áureas franjas na cambraia,

Quisera estar nos teus braços,
ou prestar-te o bom serviço
de te sacudir a caspa,
de te coçar o toutiço.

Muito peço, não sou digna
de mercê tão levantada;
dá-me os teus pés, isso basta,
nem eu desejo mais nada.

Que prendas eu te daria!
escarpins de prata fina,
umas calças de damasco,
uns calções de bombazina;

muitas pedras preciosas,
finas pér’las orientais,
que, a não terem companheiras,
não contariam iguais!

Não mires dessa Tarpéia
este incêndio que me queima,
Nero manchego, que o fogo
avivas coa tua teima.

Menina sou, virgem tenra,
quinze anos não completei;
tenho catorze e três meses,
juro pela santa lei.

Não sou manca, não sou coxa,
não tenho um só aleijão,
meus cabelos cor de lírios,
’stando em pé, chegam-me ao chão.

A boca tenho aquilina,
tenho a penca abatatada;
os dentes são uns topázios!
vê que beleza afamada!

Sou pequenina, o que importa?
A minha voz, fresca e pura,
confessa que (se me escutas)
tem suavíssima doçura.

Conquistou minha alma ingênua
teu rosto que me enamora;
sou donzela desta casa,
e chamam-me Altisidora.


CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XLIV.

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