terça-feira, 27 de março de 2012

A Sancho



Apenas a branca Aurora dera lugar a que o lúcido Febo, com o ardor dos seus quentes raios, enxugasse as líquidas pérolas dos seus cabelos de ouro, D. Quixote, sacudindo o torpor dos seus membros, pôs-se a pé e chamou o seu escudeiro Sancho, que ainda ressonava, e, antes de o despertar, exclamou:
 
— Ó tu, bem-aventurado mais do que todos os que vivem na face da terra, pois, sem teres inveja, nem seres invejado, dormes com tranqüilo espírito, sem te perseguirem nigromantes, nem sobressaltarem nigromancias. Dorme, repito, e repetirei cem vezes, sem te inspirarem continuada vigília zelos da tua dama, nem te desvelarem pensamentos de pagar dívidas, nem do que hás-de fazer para comer no dia seguinte, tu e a tua pequena e angustiada família, nem a ambição te inquieta, nem a vã pompa do mundo te fatiga, pois os limites dos teus desejos não se estendem além do teu jumento, que o da tua pessoa carrega nos meus ombros, contrapeso e carga que puseram a natureza e o costume aos amos. Dorme o criado, está o amo de vela, pensando como o há-de sustentar e melhorar, e fazer-lhe mercês. A angústia de ver que o céu se faz de bronze, sem acudir à terra com o conveniente orvalho, não aflige o criado, aflige o amo, que há-de sustentar na esterilidade e na fome o que o serviu na fertilidade e na fartura.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XX.

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