quinta-feira, 29 de março de 2012

Da vingança

— Eu, meus senhores, sou cavaleiro andante, cujo exercício é o das armas e cuja profissão é a de favorecer os que de favor precisam, e acudir aos que de socorro hão mister. Há dias que soube da vossa desgraça e da causa que vos move a pegar em armas, para vos vingardes dos vossos inimigos; e, tendo pensado maduramente no vosso negócio, entendo, segundo as leis do duelo, que andais erradamente, supondo-vos afrontados, porque nenhum particular pode afrontar um povo inteiro, senão arrojando a todos juntos o epíteto de traidores, por não saber qual deles foi que cometeu a traição. Temos exemplo disto em D. Diogo Ordoñez de Lara, que desafiou todo o povo de Samora, porque ignorava que só Velido Dolfos fora o traidor que matara o seu rei, e por isso a todos reptou e a todos tocava a vingança e a resposta; e, ainda assim, não pode deixar de se dizer que o senhor D. Diogo andou com certa precipitação, e passou muito adiante dos limites do repto, porque não tinha motivo para reptar os mortos, as águas e os pães e os que ainda não tinham nascido, nem as outras minudências que no desafio se declaram; mas, enfim, passe! porque, quando a cólera se apodera impetuosamente de um homem, não há quem lhe segure a língua, nem há freio que a corrija. Sendo, pois, isto assim, que um homem só não pode afrontar nem reino, nem província, nem cidade, nem república, nem povo algum inteiro, é claro que não há motivo para sairdes a vingar-vos de semelhante afronta, que o não é, porque seria curioso que a cada passo se matassem os habitantes de diferentes povoações, que têm diversas alcunhas, e os que lhas puseram ou que por elas os chamem; seria estranho, decerto, que todos os povos insignes, que têm alcunhas, se chacoteassem e se vingassem e andassem continuamente de espada desembainhada em qualquer pendência, por pequena que fosse. Não, não, nem Deus tal permita, nem queira; os varões prudentes, as repúblicas bem concertadas, por quatro coisas hão-de pegar em armas e arriscar as suas pessoas, vidas e fazendas. Primeira, para defender a fé católica; segunda, para defender a vida, que é de lei natural e divina; terceira, em defesa da sua honra, da sua família e da sua fazenda; quarta, em serviço do seu rei em guerra justa; e, se lhe quisermos ainda acrescentar uma quinta causa, para defender a sua pátria. A estes cinco motivos capitais se podem acrescentar alguns outros justos e razoáveis, que obriguem a tomar as armas; tomá-las, porém, por ninharias e por causas que são antes de riso e passatempo, que de afronta, não parece de gente razoável; tanto mais que o tirar vingança injusta (que justa não a pode haver), vai diretamente contra a santa lei que professamos, em que se nos manda que façamos bem aos nossos inimigos e amemos a quem nos aborrece; mandamento que, ainda que pareça um tanto dificultoso de cumprir, não o é senão para aqueles que têm menos de Deus que do mundo, e mais de carne que de espírito, porque Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, que nunca mentiu, nem pôde nem pode mentir, sendo nosso legislador, disse que o seu jugo era suave, e leve a sua carga; e assim, não nos podia ordenar coisas que fossem impossíveis de executar. Portanto, meus senhores, Vossas Mercês são obrigados, pelas leis divinas e humanas, a desistir da luta.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XXVII.

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