quarta-feira, 6 de julho de 2011

Se o meu “foi” tornasse a ser...



Se o meu “foi” tornasse a ser,
sem eu ter que esp’rar “será”,
ou viesse o tempo já
do que está p’ra acontecer...

GLOSA

Alfim, como tudo passa,
passou o bem que me deu
a fortuna nada escassa,
mas que nunca me volveu,
por mais que eu peça, ou que faça.
Fortuna, bem podes ver
que já é longo o meu sofrer;
faze-me outra vez ditoso,
que eu seria venturoso
se o meu “foi” tornasse a ser
.

Só quero um gosto, uma glória,
uma palma, um vencimento,
um triunfo, uma vitória,
tornar ao contentamento
que me é pesar na memória.
Fortuna, leva-me lá,
e temperado estará
todo o rigor do teu fogo,
sobretudo sendo logo,
sem eu ter que esp’rar “será”
.

Sei que sou indeferido,
pois tornar o tempo a ser,
depois de uma vez ter sido,
não há na terra poder
que a tanto se haja estendido.
Corre o tempo; leve dá
seu vôo, e não voltará,
e erraria quem pedisse,
ou que o tempo já partisse,
ou viesse o tempo já
.

Viver em perplexa vida,
ora esperando, ora temendo,
é morte mui conhecida,
e é muito melhor morrendo
buscar para a dor saída.
Eu preferia morrer,
mas não o devo querer,
pois com discurso melhor
me dá a vida o temor
do que está p’ra acontecer.


CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XVIII.

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