domingo, 3 de julho de 2011

Dos Filhos e Poesias




Contexto: No caminho para Saragoça, no capítulo XVI, Dom Quixote encontrara o fidalgo Dom Diogo de Miranda que passava de largo a estrada, e que resolveu fazer companhia ao Cavaleiro da Triste figura, pelo que restava de caminho, ao que entreteram-se em colóquios, e nessas práticas Dom Diogo fizera Dom Quixote saber de sua angústia ao observar que seu filho encaminhara-se para as ciências não muito úteis, segundo ele, da poesia e filologia, ao que Dom Quixote redargüiu-lhe nestes termos.



— Os filhos, senhor — respondeu D. Quixote — são pedaços das entranhas de seus pais, e sejam bons ou maus, sempre se lhes há de querer como às almas que nos dão vida; aos pais cumpre encaminhá-los desde pequenos pela senda da virtude, da boa criação e dos bons e cristãos costumes, para que sejam bordão da velhice de seus pais e glória da sua posteridade, quando forem crescidos; e enquanto a forçá-los que estudem esta ou aquela ciência não o tenho por acertado, ainda que o persuadir-lho não será danoso; e, quando não se tem de estudar para
pane lucrando, sendo o estudante tão venturoso, que recebesse do céu pais que lhe deixem haveres, seria eu de parecer que o não impedissem de seguir a ciência para que se inclina, e ainda que a da poesia é menos útil do que deleitosa, não é das que desonram os que a possuem.

A poesia, no meu entender, senhor fidalgo, é como uma donzela meiga, juvenil e formosíssima, que se desvelam em enriquecer, polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras ciências, e todas com ela se hão de autorizar; mas esta donzela não quer ser manuseada, nem arrastada pelas ruas, nem publicada nas esquinas das praças, nem pelos desvãos dos palácios. É feita por uma alquimia de tamanha virtude, que quem souber tratá-la pode mudá-la em ouro puríssimo; não a há de deixar correr quem a tiver por torpes sátiras e desalmados sonetos; não se há de vender de nenhum modo, a não ser em poemas heróicos, em lamentáveis tragédias ou em comédias alegres e artificiosas; não se há de deixar tratar pelos truões, nem pelo vulgo ignorante, incapaz de conhecer nem de estimar os tesouros que nela se encerram. E não penseis, senhor, que chamo aqui vulgo somente à gente plebéia e humilde, que todo aquele que não sabe, ainda que seja senhor e príncipe, pode e deve ser contado entre o vulgo; e assim, quem cuidar a poesia com estes requisitos, terá fama e nome estimado em todas as nações civilizadas do mundo.

E enquanto ao que dizeis, senhor, de vosso filho não ter em grande estima a poesia castelhana, entendo que não anda nisso com muito acerto, e a razão é esta: o grande Homero não escreveu em latim, porque era grego; nem Virgílio escreveu em grego, porque era latino. Enfim, todos os poetas antigos escreveram na língua que beberam com o leite e não foram procurar os idiomas estrangeiros para manifestar a alteza dos seus conceitos; e, sendo isto assim, era razoável que este costume se estendesse por todas as nações, e que se não menosprezasse o poeta alemão que escreve na sua língua, nem o castelhano, nem o próprio biscainho que escreve na sua; mas vosso filho, senhor, ao que imagino, não estará de mal com a poesia moderna, mas sim com os poetas que são meros versejadores castelhanos, sem saberem outras línguas, nem outras ciências que adornem, despertem e auxiliem o seu natural impulso; e ainda nisto pode haver erro, porque, segundo opiniões sensatas, o poeta nasce poeta, e com essa inclinação que o céu lhe deu, sem mais estudo nem artifício, compõe coisas que fazem verdadeiro quem disse:
"Est Deus in nobis". Também digo que o poeta natural, que se auxiliar com a arte, se avantajará muito ao poeta que só por saber a arte o quiser ser. O motivo disto é que a arte não vence a natureza, mas aperfeiçoa-a; de forma que a natureza e a arte, mescladas, produzirão um perfeitíssimo poeta.

Em conclusão, senhor fidalgo, entendo que Vossa Mercê deve deixar seguir seu filho a estrela que o chama, que, sendo ele tão bom escolar como deve de ser, e tendo já subido felizmente o primeiro degrau das ciências, que é o das línguas, com elas subirá por si ao cúmulo das letras humanas, que tão bem parecem num cavaleiro de capa e espada, e o adornam, honram e engrandecem, como as mitras aos bispos, ou como as garnachas aos jurisconsultos peritos. Ralhe Vossa Mercê com seu filho, se fizer sátiras que prejudiquem as honras alheias, e castigue-o e rasgue-lhas; mas, se fizer prédicas à moda de Horácio, em que repreenda os vícios em geral, como ele tão elegantemente o fez, louve-o, porque é lícito ao poeta escrever contra a inveja e dizer nos seus versos mal dos invejosos, e contra os outros vícios, sem designar pessoa alguma; mas há poetas que, para dizerem uma malícia, se arriscam a ser degredados para as ilhas do Ponto[1]. Se o poeta for casto nos seus costumes, sê-lo-á também nos seus versos; a pena é a língua da alma: como forem os conceitos que nela se gerarem, assim serão os seus escritos; e quando os reis ou príncipes vêem a milagrosa ciência da poesia em sujeitos prudentes, virtuosos e graves, honram-nos, estimam-nos e enriquecem-nos, e ainda os coroam com as folhas da árvore que o raio não ofende, como em sinal de que por ninguém hão-de ser ofendidos os que virem com os seus lauréis honrada e adornada a sua fronte.


[1] - Alusão ao desterro de Ovídio no mar Negro, se bem que o poeta não foi desterrado às ilhas, mas as margens do Ponto.



CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XVI.

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