quinta-feira, 7 de julho de 2011

Da jurisdição dos pais sobre as filhas.

— Se casassem todos os que se querem — acudiu D. Quixote — tirava-se aos pais a escolha e a jurisdição de casarem os seus filhos com quem devem e quando querem, e se ficasse à vontade das filhas escolher os maridos, haveria tal que escolheria o criado do pai, e outra o que viu passar na rua, no seu entender bizarro e jeitoso mancebo, ainda que fosse um espadachim valdevinos: que o amor e a afeição facilmente cegam os olhos do entendimento, tão necessários para escolher estado; e no do matrimônio é muito perigoso o erro, e é mister grande tento e particular favor do céu para acertar. Quer uma pessoa empreender uma larga viagem e, se é prudente, antes de se pôr a caminho busca alguma companhia segura e aprazível. Pois por que não fará o mesmo o que há-de caminhar toda a vida até ao paradeiro da morte, quando de mais a mais a pessoa escolhida tem de ser sua companheira de cama e mesa, como acontece à mulher com seu marido? Uma esposa não é mercadoria que, depois de comprada, ainda se pode trocar ou rejeitar; é um acidente inseparável, que dura a vida toda; é um laço que, uma vez atado ao pescoço, se transforma em nó górdio, que, se não for cortado pela garra da morte, não há meio de desatar. Muitas mais coisas poderia dizer neste assunto, se o não estorvara o desejo que tenho de saber se o senhor licenciado tem mais alguma coisa que narrar da história de Basílio.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de; O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Tomo II, Capítulo XVIII.

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