quinta-feira, 13 de junho de 2013

Família

Já falei em meu livro sobre agressão publicado em 1963 e em diversas conferencias(1968/1969), sobre o fato de sabermos qual a proveniência das causas etologicas dessa guerra das gerações. Aqui me limitarei, portanto, ao estritamente necessário. Todos esses fenômenos resultam de uma perturbação funcional, que intervém no organismo quando chega a puberdade. Durante essa fase o adolescente começa a se desligar das tradições familiares. Ele as examina com olhos críticos e procura outras formas de realização de seu ideal, um grupo novo a qual possa se juntar e cuja causa possa abraçar. O desejo instintivo de lutar por uma causa é determinante na escolha de um objetivo, sobretudo nos jovens. Durante esse período, tudo o que é tradicional parece tedioso, tudo que é novo, atraente. Poderíamos até falar de “neofilia fisiológica” ou de um apetite de novidade.

Esse processo tem sem dúvida um grande valor para a manutenção da espécie, razão pela qual foi inscrito no programa de comportamento humano, no decorrer da filogênese. Sua função é a de suavizar a transmissão, excessivamente rígida, das normas culturais do comportamento. Nesse sentido pode ser comparado à muda do caranguejo, que deve rejeitar a carapaça para poder crescer. Toda estrutura sólida destinada a servir de armadura se adquire às custas de uma certa dose de liberdade. A tradição cultural não foge a essa regra. Nela também a parte destrutiva inerente a toda transformação acarreta certos perigos pois, entre o momento da demolição e o da reconstrução, fica-se momentaneamente sem abrigo e sem apoio. É o caso do caranguejo na hora da muda e do adolescente em crise de puberdade.

Normalmente o período de apetência pela novidade ou neofilia é seguido de uma fase de retorno aos valores tradicionais. Isso acontece insensivelmente; a maioria dos homens da minha geração pode testemunhar que, pertos dos sessenta anos, damos muito mais valor às palavras de nossos pais do que dávamos aos dezoito.

Mitscherlich chama esse fenômeno de “obediência tardia”. O apetite pela novidade e a obediência tardia juntas formam um sistema cuja função estabilizadora é a de eliminar os elementos anárquicos da cultura tradicional, que ameaçam deter seu desenvolvimento, mantendo os valores essenciais e insubstituíveis. Como o funcionamento desse sistema depende da interação de numerosos fatores, internos e externos, ele é facilmente alterado.

O atraso do desenvolvimento pode ser determinado pelas condições do meio, mas também por fatores genéticos. Dependendo das causas que o provocam e do momento de seu aparecimento, as conseqüências diferem muito. A persistência no estado de infantilismo pode redundar num excessivo agarramento aos pais e às tradições da geração anterior. Nesse caso as pessoas têm dificuldade em se entender como os de sua idade e acabam frequentemente tornando-se seres extravagantes. Uma fixação anormal no estágio da neofilia provoca um ressentimento característico contra os pais, às vezes mortos há muito, e isso causa uma anomalia do comportamento. Esses dois fenômenos são bem conhecidos dos psicanalistas.

Mas as perturbações que levam ao ódio e à guerra entre gerações têm outras causas, das quais duas principais. Por um lado, cada geração exige modificações e adaptações do patrimônio cultural, cada vez mais importantes. Na época de Abraão o ajustamento às normas de comportamento que o filho recebia do pai, e que por sua vez devia modificar, era tão mínimo que (como Thomas Mann mostrou perfeitamente em seu maravilhoso romance psicológico “José e seus Irmãos”) os homens dificilmente distinguiam sua própria pessoa da do pai, o que constitui a forma de identificação mais perfeita que se possa imaginar. O ritmo de desenvolvimento que a tecnologia impõe à civilização contemporânea é tal que o patrimônio das tradições da atual geração é, com razão, considerado absolutamente ultrapassado pelos jovens. O erro que já mencionamos, de que o homem poderia fazer surgir do solo uma nova cultura de forma racional e arbitrária, leva à aberração de pensar se seria melhor acabar com o mundo dos pais para poder “recriar” um mundo novo. Isso realmente seria possível, desde que se recomeçasse no estágio do homem anterior à Cro-Magnon!

Mas a tendência generalizada dos jovens de hoje, de recusar tudo sem discriminação, tem outras causas. As transformações sofridas pela estrutura familiar a partir da crescente influencia da técnica levam a diminuir progressivamente os contactos entre pais e filhos. Isso já aconteceu em relação ao bebê, não é raro vermos surgir as perturbações que René Spitz qualificou de hospitalismo. Os sintomas decorrentes são uma deficiência grave e frequentemente irreversível da capacidade de manter relações humanas. Essas perturbações vêm reforçar perigosamente as da faculdade de simpatizar com os outros, das quais já falamos no capitulo II.

Mais tarde, a ausência de exemplo paterno cria problemas, sobretudo nos rapazes. A não ser em ambientes de camponeses ou de artesãos, um rapaz hoje em dia quase não vê o pai no trabalho. Ainda mais rara é a oportunidade de ajudá-lo, sentindo assim admiração pelo homem em sua maturidade.

Da mesma forma a família moderna perdeu a estrutura hierárquica que antigamente conferia ao velho sua dignidade respeitável. Uma criança de cinco anos é incapaz de avaliar diretamente a superioridade de seu pai de quarenta anos. Em compensação, é impressionada pela força física de uma criança de dez anos e compreende a admiração que esta devota a seu irmão mais velho de quinze anos. Intuitivamente extrai as conclusões apropriadas, quando vê o irmão mais velho admirar a superioridade intelectual do pai, que ele é bastante inteligente para apreciar.

O reconhecimento de uma situação hierárquica não é um obstáculo ao amor. Cada qual deveria se lembrar de que em criança não amou menos as pessoas que admirava e às quais se submetia. Ao contrario, as amou ainda mais do que aos seus pares e seus inferiores. Ainda me lembro muito bem do respeito que eu tinha por meu amigo Emmanuel la Roche, morto prematuramente, e quatro anos mais velho que eu. Lembro-me também da autoridade, justa mas severa, que ele exercia sobre nosso grupo de crianças de dez a dezesseis anos. E me lembro, enfim, de como eu o amava. Meu sentimento era de qualidade análoga ao afeto que tive mais tarde por alguns amigos mais velhos ou professores que eu venerava. Dizer que a hierarquia natural entre duas pessoas é um obstáculo a sentimentos cordiais, declarar que se trata de uma “frustração” é um dos maiores crimes cometidos pela doutrina pseudodemocrática. Sem essa hierarquia, a forma mais natural do amor humano, a que normalmente une os membros de uma família, nem existiria. Milhares de crianças se tornaram neuróticos infelizes, devido à célebre educação “anti-autoritária” destinada a evitar frustrações.

Como disse em obras já citadas, a criança criada no interior de um grupo não hierarquizado encontra-se numa situação absolutamente artificial. Não podendo reprimir em si a tendência instintiva de ocupar o primeiro lugar, ela tiraniza os pais despidos de resistência, e se vê obrigada a assumir um papel de chefe, no qual não se sente nada bem. Em falta de um superior mais forte que ela, encontra-se sem defesa num mundo que lhe e hostil, pois as crianças criadas de acordo com os métodos “Antiautoritários” não são amadas em lugar nenhum. Quando tenta irritar os pais para provocar uma justa reação de indignação, e “pede tapas” não recebe a resposta agressiva que inconscientemente esperava, mas esbarra no muro de borracha de belos discursos apaziguantes e nas frases ocas pseudo-racionais.

Ora, nenhum homem se identifica com um pobre escravo, ninguém está disposto a deixar que ele lhe dite regras de conduta e ainda menos a admitir os valores culturais que respeita. Somente quando amamos alguém no mais profundo do coração e quando ao mesmo tempo o admiramos podemos adotar essa tradição. Essa “imagem do pai” falta à maioria dos atuais adolescentes. O próprio pai se revela frequentemente incapaz e a superpopulação dos colégios e das universidades impede que um professor respeitado assuma esse papel.

A essas razões de ordem etológica para rejeitar o mundo dos pais, numerosos jovens inteligentes acrescentam razões de ordem ética. Pois a massa domina nossa civilização ocidental contemporânea, com a devastação da natureza, a negação dos verdadeiros valores, a corrida para o dinheiro, o empobrecimento do sentimento, o embrutecimento pela doutrinação. Esses exemplos são evidentemente indignos de serem seguidos, mas levam a esquecer facilmente que todo o fundo de verdade e de sabedoria inerente à nossa cultura. A juventude tem, na verdade, boas razões para entrar em guerra com as diferentes formas de “establishment”. Entretanto, é muito difícil estabelecer quantos desses jovens e desses estudantes revoltados estão maduros para essas considerações. O que acontece, nos embates públicos, é provocado indiscutivelmente por razões bem diferentes, por impulsos que são, inconscientemente, de ordem etológica e entre os quais o ódio étnico(cultural) ocupa o primeiro lugar. Infelizmente, os jovens pensantes que têm motivação racional são também os menos violentos, de forma que a imagem aparente da rebelião é amplamente dominada pelos sintomas de regressão neurótica. Obedecendo a uma lealdade mal compreendida, os mais moderados entre os jovens são manifestamente incapazes de se distanciar dos mais impulsivos. Discutindo com estudantes tive a impressão que a proporção de pessoas razoáveis era muito maior do que as aparências faziam supor.

Não devemos esquecer, apesar de tudo, que as considerações racionais têm um poder de ação bem menor do que a força elementar, instintiva, que se esconde atrás dessas agressões. E sobretudo não devemos esquecer as conseqüências que acarreta para os próprios jovens essa recusa radical das tradições familiares, pois elas podem ser fatais. Durante a fase da “neofilia fisiológica” o adolescente é tomado por um desejo irrefreável de ligar-se a um grupo e, principalmente, participar de suas agressões coletivas. Esse impulso é tão forte quanto o de um outro instinto qualquer programado na filogênese, como sejam a fome ou a sexualidade. Na melhor das hipóteses, esse instinto pode se fixar num objeto determinado através do aprendizado e de argumentações. Mas não pode ser completamente dominado ou eliminado pela razão. Se ele aparecesse dominado, o perigo de uma neurose seria iminente.

No quadro da manutenção de um sistema cultural, o fenômeno normal no estágio ontogênico da puberdade é que os adolescentes se juntem em grupos étnicos*, ao serviço de ideais novos, e que empreendam reformas essenciais das regras do comportamento tradicional, sem entretanto jogar fora, em sua totalidade, o patrimônio cultural de seus pais. Assim, o adolescente se identifica sem equivoco com o grupo jovem de uma cultura antiga. É da natureza profunda do homem – ser de civilização por excelência – encontrar identificação satisfatória somente no interior de uma cultura e através dos intérpretes de uma cultura. Se está impedido pelos obstáculos dos quais falamos, satisfaz sua necessidade de identificação e de pertencer a um grupo, assim como o faria no caso de um impulso sexual insatisfeito, escolhendo um objeto sobressalente. A falta de discernimento, com a qual as forças impulsivas contidas podem se descarregar sobre objetos surpreendentemente mal adaptados, é há muito conhecida de todos os que fazem pesquisas sobre o instinto. Mas existem poucos exemplos tão chocantes quanto os da escolha feita frequentemente pelos jovens em sua apaixonada procura de um grupo. Tudo é melhor do que não pertencer a um grupo, até mesmo ingressar na mais triste das comunidades, a dos drogados. Aristide Esser, especialista neste campo, mostrou que o tédio do qual falamos no capítulo V, e sobretudo a necessidade de fazer parte de um clã levam um número crescente de jovens a se drogar.

*Lorenz usa essa palavra mormente no sentido cultural nesse livro.

Konrad Lorenz, Civilização e Pecado, Capítulo VII: Ruptura da Tradição, Pg. 93

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