domingo, 19 de maio de 2013

Superpopulação

Na realidade, o ajuntamento humano nas cidades modernas é em grande parte responsável por não sermos mais capazes de distinguir o rosto do próximo nessa fantasmagoria de imagens humanas que mudam, se superpõem e se apagam continuamente. Diante dessa multidão e dessa promiscuidade nosso amor pelos outros se desgasta a tal ponto que o perdemos de vista. Os que querem ainda ter para com seus semelhantes sentimentos benévolos, são obrigados a se concentrar em um pequeno número de amigos. Pois somos feitos de modo que nos é impossível amar toda a humanidade, apesar da justeza dessa exigência moral. Somos portanto obrigados a fazer uma escolha, ou seja, a manter a distância, emocionalmente, numerosos seres dignos da nossa amizade. "Not to get emotionally involved" é um dos principais cuidados de muitos habitantes das grandes cidades. É um processo absolutamente inevitável para cada um de nós, mas já manchado de desumanidade. Lembra a atitude dos antigos plantadores americanos que tratavam com muita humanidade os negros encarregados do serviço da casa, enquanto consideravam os escravos das plantações como animais domésticos de algum valor. Levando mais adiante esse tipo de defesa voluntária contra as relações humanas, veremos que, de conformidade com os fenômenos de exaustão do sentimento, dos quais falaremos mais adiante, ele conduz às espantosas manifestações de indiferença que os jornais relatam diariamente. Quanto mais somos levados a viver na promiscuidade das massas, mas cada um de nós se sente acuado pela necessidade de "not to get involved". É assim que hoje em dia os ataques a mão armada, o assassinato e o estupro podem acontecer em plena luz do dia, justamente no centro das grnade cidades, nas ruas cheias de gente, sem que sequer um transeunte intervenha.

Amontoar os homens em espaços limitados leva de forma indireta a atos de desumanidade provocados pelo esgotamento e desaparecimento progressivo dos contatos, e é a causa direta de todo um comportamento agressivo. Numerosas experiências realizadas em animais nos ensinaram que a agressividade entre congêneres pode ser estimulada amontoando-os em espaço limitado. Quem nunca teve experiência semelhante, quer em cativeiro, quer numa situação semelhante,  em que muitas pessoas vivem juntas por força das circunstâncias, não pode avaliar o grau de intensidade que chega a irritabilidade. E se a pessoa tenta se controlar, se se esmera no contato de cada dia, de cada hora, para ter uma atitude delicada, e portanto amigável, para companheiros pelos quais não tem qualquer amizade, a situação se torna um suplício. A falta de amabilidade generalizada, que podemos observar em todas as grandes cidades, é claramente proporcional à densidade das massas humanas aglomeradas em determinado lugar. Atinge proporções aterradoras nas grandes estações, ou nos terminais de Nova York, por exemplo.

A superpopulação contribui diretamente para gerar todos os problemas, todos os fenômenos de decadência que estudaremos nos sete capítulos seguintes. Acreditar na possibilidade de se produzir, graças a um "condicionamento" apropriado, um novo tipo de homem, armado contra as consequências nefandas do empilhamento num espaço limitado, me parece uma ilusão perigosa.

Konrad Lorenz, Civilização e Pecado, Superpopulação, 1974

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