quarta-feira, 8 de junho de 2011

Vontade transcendente




Há dois caminhos, por onde os homens podem chegar a ser ricos e considerados: um é o das letras, o outro o das armas. Eu, pela inclinação que tenho para as armas, vejo que nasci debaixo do influxo do planeta Marte, de forma que me é forçoso seguir por esse caminho; por ele hei de ir malgrado a toda a gente, e debalde vos cansareis em persuadir-me a que não queira o que os céus querem, o que a fortuna ordena, o que pede a razão, e, sobretudo, o que a minha vontade deseja; pois sabendo, como sei, os inúmeros trabalhos que tem a cavalaria andante, sei também os bens infinitos que com ela se alcançam, e sei que a senda da virtude é muito estreita, e o caminho do vício largo e espaçoso, que os seus fins e paradeiros são diferentes, porque o do vício, dilatado e espaçoso, acaba na morte, e o da virtude, apertado e íngreme, acaba em vida, e não em vida que tenha termo, mas na vida eterna, e sei como disse o nosso grande poeta castelhano:

Conduz-nos esta aspérrima vereda
da imortalidade ao alto assento,
aonde não chega quem dali se arreda.*


SAAVEDRA, Miguel de Cervantes, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, Capítulo VI, Tomo II.

*Garcilaso, Elegia, I.

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