terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ócios e ociosidade

Existe uma selvageria própria de pele-vermelha, portanto, particular ao sangue índio, na maneira como os americanos aspiram ao ouro; e o seu frenesi no trabalho – o verdadeiro vício do Novo Mundo- começa já a barbarizar, por contágio a velha Europa, dizimando uma estranha ausência de espírito.
Tem-se agora vergonha do descanso; quase se experimentaria um remorso com a reflexão mais demorada. Pensa-se de relógio na mão, mesmo quando se está a almoçar, com um olho no correio da bolsa; vive-se permanentemente como alguém que tem medo de “perder” alguma coisa. “Mais vale agir do que não fazer nada”, eis ainda um desses princípios de carregar pela boca que correm o risco de vibrar o golpe de misericórdia a qualquer cultura, e qualquer gosto superior.
Este frenesi no trabalho dobra os afiados de todos os modos; pior, enterra o próprio sentimento desta forma, o senso melódico do movimento; as pessoas tornam-se cegas e surdas a todas as suas harmonias. A prova está na pesada precisão que se exige agora em todas as situações em que o homem quer estar honestamente diante do seu semelhante, nas suas relações com amigos, mulheres, pais, filhos, patrões, alunos, guias e príncipes; tem-se falta de tempo, tem-se falta de força para consagrar à cerimônia, os meneios da cortesia, o espírito da conversa, e o ócio de uma maneira geral.
Uma vez que a vida, tornada caça ao lucro, obriga o espírito a esgotar-se sem repouso no jogo de dissimular, de iludir, ou de prevenir o adversário; a verdadeira virtude consiste agora em fazer uma coisa mais depressa do que um outro. Dessa forma, só em raras horas é que as pessoas se podem permitir ser sinceras: e nessas horas, está-se tão cansado que se aspira não somente a “deixar correr” mas a estender-se pesadamente a deitar-se.
É esta inclinação que dá o tom da correspondência agora; e o estilo e o espírito das castas, serão sempre o verdadeiro “sinal do tempo”. Se ainda se encontra prazer na sociedade e nas artes, é um prazer do gênero daqueles que podem encontrar os escravos mortos de trabalho. Oh! Como alegram-se por pouca coisa essa gente do momento, com ou sem cultura, como é modesta nas suas “alegrias”! Que vergonha a suspeita que atraem, cada vez mais severamente, sobre si! Todos os dias o trabalho domina mais e mais a consciência em seu proveito: o gosto da alegria chama-se já “necessidade de descanso”; começa a corar de si próprio. “temos de fazer isto em função da saúde”, diz-se às pessoas que vos surpreendem em uma volta pelo campo.
Neste ritmo as coisas poderão ir, rapidamente, tão longe que não se ousará mais ceder, sem desprezo por si próprio e sem experimentar remorso ao gosto pela vida contemplativa, ao desejo de passear em companhia de pensamentos e de amigos. Pois, antigamente, a maneira era inversa: era o trabalho que sofria de má consciência.
Um homem bem nascido escondia o seu trabalho, se necessidade o constrangia a fazer um. O escravo trabalhava esmagado pelo sentimento de fazer alguma coisa desprezível: “fazer” já o era por si só desprezível. “Somente há nobreza e honra no otium (ócio) e no bellum (guerra)”, assim falava o preconceito antigo!

NIETZSCHE, F. Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 168-169.

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