O DESCONHECIDO
E o que exigirias para a mulher de teus amores?
MACÁRIO
Pouca coisa. Beleza, virgindade, inocência, amor...
O DESCONHECIDO (irônico)
Mais nada?
MACÁRIO
Notai que por beleza indico um corpo bem feito, arredondado, cetinoso, uma pele macia e rosada, um cabelo de seda frouxa e uns pés
mimosos...
O DESCONHECIDO
Quanto à virgindade?
MACÁRIO
Eu a quereria virgem na alma como no corpo. Quereria que ela
nunca tivesse sentido a menor emoção por ninguém. Nem por um primo, nem por um irmão...
Que Deus a tivesse criado adormecida na alma até ver-me, como aquelas princesas
encantadas dos contos que uma fada adormecera por cem anos. Quereria que um anjo a cobrisse sempre
com seu véu, e a banhasse todas as noites do seu óleo divino para guardá-la
santa... Quereria que ela viesse criança transformar-se em mulher nos meus
beijos.
O DESCONHECIDO
Muito bem, mancebo! E esperas essa mulher?
MACÁRIO
Quem sabe!
O DESCONHECIDO
E é no lodo da prostituição que hás de encontrá-la?
MACÁRIO
Talvez! É no lodo do oceano que se encontram as pérolas...
O DESCONHECIDO
Em mau lugar procuras a virgindade! É mais fácil achar uma
pérola na casa de um joalheiro que no meio das areias do fundo do mar.
MACÁRIO
Quem sabe!...
O DESCONHECIDO
Duvidas pois?
MACÁRIO
Duvido sempre. Descreio às vezes. Parece-me que este mundo é
um logro. O amor, a glória, a virgindade, tudo é uma ilusão.
O DESCONHECIDO
Tens razão: a virgindade é uma ilusão! Qual é mais virgem, aquela
que é deflorada dormindo, ou a freira que ardente de lágrimas e desejos se
revolve no seu catre, rompendo com as mãos sua roupa de morte, lendo algum
romance impuro?
MACÁRIO
Tens razão: a virgindade da alma pode existir numa
prostituta, e não existir numa virgem de corpo. Há flores sem perfume, e
perfume sem flores. Mas eu não sou como os outros. Acho que uma taça vazia
pouco vale, mas não beberia o melhor vinho numa xícara de barro.
O DESCONHECIDO
E contudo bebes o amor nos lábios de argila da mulher
corrupta!
MACÁRIO
O amor? Que te disse que era o amor? É uma fome impura que
se sacia. O corpo faminto é como o conde Ugolino na sua torre, morderia até num
cadáver.
O DESCONHECIDO
Tua comparação é exata. A meretriz é um cadáver.
MACÁRIO
Vale-nos ao menos que sobre seu peito não se morre de frio!
O DESCONHECIDO
Admira-me uma coisa. Tens vinte anos: deverias ser puro como
um anjo e és devasso como um cônego!
MACÁRIO
Não é que eu não voltasse meus sonhos para o céu. A cisterna
também abre seus lábios para Deus, e pede-lhe uma água pura, e o mais das vezes
só tem lodo. Palavra de honra, que às vezes quero fazer-me frade.
O DESCONHECIDO
Frade! Para quê?
MACÁRIO
É uma loucura. Enche esse copo. (Bebe) Pela Virgem Maria! Tenho
sono. Vou dormir.
O DESCONHECIDO
E eu também. Boa-noite.
Álvares de Azevedo, Macário.